09/11/2022

Hipocrisias

Reza a quase lenda que no próximo sábado me deslocarei ao campo, sei lá, conviver com a Mãe Natureza, as árvores e os passarinhos, e ainda com uma montanha de pessoas da minha idade chatas como a potassa. Acho que é o aniversário do anfitrião, que foi vagamente meu vizinho de cima durante uns anos e jamais nos convidou para o que quer que fosse, uma vez que não temos cromos para a troca, e agora, espectacularmente, lembrou-se. De caminho, deixou cair que tem uma amiga a quem foi recentemente feito o diagnóstico de cancro e que está um pouco perdida. A besta que me habita concluiu que talvez, quem sabe, estaria na lista de convidados do ex-coabitante para fazer, totalmente à borla — ou não, pois uns croquetes e umas empadas de galinha devem contar como honorários —, psicoterapia à amiga do dito coiso. Levei mais de uma semana a dar o sim, mas mal sabe ele que a minha ida está dependente de factores tão aleatórios como a mood com que acorde nesse dia, o estado do tempo e se a roupa secou no estendal. 

É verdade que recebi muito apoio, que me foi absolutamente precioso, aquando do diagnóstico e tratamentos. Mas recebi-o das minhas pessoas, assim como de algumas que, apesar de nunca ter visto, me estão no coração por me terem dado a mão quando não tinha nada nas minhas para dar, a não ser medo — que, como se sabe, é constituído por uma matéria ora viscosa, ora dura e cheia de arestas pontiagudas e são poucos aqueles que estão dispostos a ajudar-nos a carregá-lo. É também verdade que não tenho nada para dizer a uma pessoa que recebeu agora o diagnóstico de cancro. Detesto clichês, já aqui o disse trezentas vezes e repito, não quero ver-me num papel que não sei interpretar, “vai correr tudo bem”, “isso passa”, “é só cabelo, depois nasce mais forte”, porque não acredito piamente em nada disto, ou melhor, nada disto é ciência infalível, aplicável a todas as pessoas. Na minha cabeça “Vais passar às portas do inferno, vais comer o pão que o diabo amassou, vais acordar todos os dias com uma dor ou uma ferida novas”, na minha boca “Vai correr tudo bem”? Eu não sou assim, se calhar o melhor é não ir. Porque ou me apanham muda, ou me apanham calada, para não ser cruel. Ou crua, enfim.