Somos vizinhas há para lá de duas décadas, ela é dessas que fazem falta, que dá revistas cor-de-rosa quando acaba de as “ler” — se é que chega a pôr-lhes os olhos em cima —, mas agora anda a morar numa ilha, desde que o vírus veio e o casamento começou a desmoronar-se, levou o homem com ela, como se não arranjasse melhor do que um careca esquálido e choninhas, que, disse-me ela certa vez, andava embeiçado por uma “fulana” que vivia três prédios adiante, nem para trair foi capaz de ir longe, mas o amor tem destas porcarias, e quem sou eu, que sou só vizinha, para avaliar o que se passava entre quatro paredes e um tecto e agora rodeados de oceano por todos os lados, a céu descoberto?
Nunca lhe conheci mãe, pai sim, zeloso e dedicado ao único irmão, deficiente grave de uma maleita que não sei identificar, atrasos e incapacidades a todos os níveis, só não é deslocado numa cadeira de rodas por, acredito fervorosamente, teimosia de pai e irmã. Vi-o passar outro dia, naquela espécie de andar de pernas arrastadas, apoiado, de um lado, no pai — que nunca vi envelhecer —, do outro numa das filhas dela, ambos carregando, a pequeníssimos passos, o corpo a cada dia mais deformado e sofrido, como uma cruz que, por motivos que quem, como eu, assiste só da bancada, não compreende o quanto, muito mais do que lhes pesar, os faz felizes. Não por esse motivo, mas por todos os outros, nada mais me veio à cabeça, que não fosse, “Que sorte que tu tens, Ester, que ainda tens o teu pai”.
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