08/05/2020

Filas

Então, a pessoa vai ao correio enviar um envelope, correio normal, simplezinho, "são três dias úteis, a senhora não se importa?", e a senhora, efectivamente, não se importa. O que são três dias úteis na contagem infinita dos dias inúteis que antecedem?
A fila do costume, dez pessoas à frente, logo mais uma ou duas atrás. Só parece maior porque estamos distantes uns dos outros aquele mínimo de um metro. 
Os funcionários da Junta aparecem munidos da máquina que parece um aspirador, mas que é, na realidade, um expirador. Um traz óculos de protecção e máscara, o outro - todo afoito, todo ele ordens -, nada. Este último grita para a fila que nos afastemos do passeio, pois ele vai soprar aquela porcaria toda. Assim fazemos, incrédulos, mas conformados, arredando-nos para a estrada (mais vale morrermos atropelados do que asfixiados e sujos com pó de plátano, são opções), e a distância de segurança dilui-se no sopro lá da máquina do general jardineiro. Ficamos mais vulneráveis, mas também - e, se calhar, por isso mesmo -, mais solidários, e entabulamos conversa de circunstância. A mim calha-me uma senhora de idade, que está tranquila e bem disposta, como eu quero ser daqui a alguns anos. Diz-me, a certa altura, que tem um cancro maligno, mas que espera a vez dela sem pressas, e aquilo parece-me uma metáfora. Atrás dela, um velhote baixa a máscara para dar uma boa tossidela, toda ela excrementos retidos nos brônquios. Afasto-me o mais que o pouco espaço me permite, e sossego-me, pensando egoistamente que o risco maior não é meu. Ao longe, vislumbro a loja do chinês, já aberta, com duas pessoas à porta, à espera de serem atendidas. A fila avança lentamente, até que chega a minha vez. Pergunto à funcionária que me atende por que é que não aumentam o contingente, visto terem quatro balcões e só funcionarem dois. Ela dá-me uma resposta que não entendo, mas percebo, mais uma vez, que antes de tudo isto praticava sem saber a leitura labial. A máscara dos outros faz-me surda, e também um pouco muda, porque ninguém percebe nada do que eu digo. 
Saio, digo à minha companheira de espera que pode entrar, e ainda desabafo: "Quase uma hora de fila para estar lá dentro um minuto, parecem as minhas consultas no médico". Os velhotes riem e eu ganho o dia.


4 comentários:

  1. És a minha catarse!
    :)

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    1. Às vezes (através aqui do blog) também sou a minha :)
      (E desencorajo-me de bater a porta de uma vez por existirem pessoas como tu! :))

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  2. a vida como ela é (agora).

    tão bom ler-te, minha blue.

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    1. Sim, mudou tudo. O cenário é o mesmo, mas nós temos outras lentes...

      Tão bom ter-te, minha flor, madrinha do coração.

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