Não sei se foi da esquina onde ele me abordou - onde já outro, em tempos, me havia vendido uma pulseira de plástico "para ajudar as crianças... [e a mãe parva que me habita não ouve mais nada, hipnotiza no termo "crianças", numa aflição sem reflexão para encontrar no porta-moedas a nota verde]" -, e, portanto, terei, mental e automaticamente, riscado aquele passeio do meu mapa de compaixão, ao descobrir, pouco depois, que a pulseira era apenas uma pulseira, sem valor estimável sequer naquela república popular asiática; não sei se foi do tempo que ele falou, que me deu tempo a mim de o observar com olhos de ver; não sei se encontrei, mesmo sem procurar, algumas incoerências em todo o discurso; não sei se é o meu coração que está a endurecer à medida que a carne amolece. Não sei do que foi, mas, desta vez - apesar de por pouco -, não caí na astúcia de quem me interpelou, "Boa tarde", e, não satisfeito com a devolução do voto, "Estamos aqui a fazer um inquérito às pessoas, não demora nada, é só um minuto, e muito obrigado por me estar a escutar". À minha resposta "Tenho pressa, por favor, não demore", sai a afirmação que pode ter sido a fatalidade no propósito dele: "Estamos a pedir às pessoas uma ajuda para as crianças [terá a ver com a minha cara?] com autismo". Ali fiquei um ou dois segundos, debatendo-me com a minha incapacidade de compreender a relação entre um inquérito e um peditório. "A senhora conhece alguma criança com autismo?" [e quem não?], mas foram as mãos dele que me disseram do logro: magras, descarnadas, ossudas, um pequeno e já envelhecido jornal numa delas, emparelhado com uma revista publicitária ainda embalada, a outra mão num tremor ansioso, branca, lisa, embora limpa, mãos de ladrão, pensou o meu coração empedernido. "A senhora tanto pode ajudar comprando a nossa revista, como ajudar com qualquer coisa". "E quanto custa?", a pedra a tentar entender a dimensão da audácia, "São cinco euros", já eu tinha desviado o olhar das indubitáveis mãos para os olhos, encovados nas órbitas proeminentes, cristalinos de um mar de Verão, azuis como as águas traiçoeiras do Pacífico, mas só quando lhe pedi a identificação como voluntário e ele respondeu "Nós somos voluntários da paróquia, não trazemos identificação", é que me caíram definitivamente as ilusões, fazendo-se em mil cacos aos meus pés e atingindo os dele. Devolvendo a todo aquele azul dois tições, afiancei, apenas: "Não."
Em casos como este, fico sempre numa luta tremenda. Será que é mentira, e se não for? Acabo, quase sempre, a contribuir com a moeda ,e mentalmente,na dúvida que persiste a encomenda: que seja em abono dos meus pecados, eu faço-o de boa fé.
ResponderEliminarBoa tarde
Eu também fico, noname, ainda ontem com este. Mas já fui tão embarretada e o facto de ele não querer identificar-se... Este não me apanhou. Sinto-me mesmo esperta, para não pensar que posso ter sido injusta.
EliminarBoa tarde