13/08/2016

A minha vida dava um filme de David Lynch

Ainda me estou a ver, sentada numa cadeira de acrílico transparente. A sala tem uma estranha geometria, parece um U, parece um C, parece uma salsicha gigante. O cheiro é demasiado intenso, a comida requentada, ou pré-azedada. Diante de mim, a mulher continua sentada, atrás de um balcão branco, e ainda não tirou os olhos do computador. Nem mesmo quando ali pousei as mãos e me avisou, entre dentes, que o balcão é traiçoeiro. Percebi isso mesmo no momento em que, das mãos passei aos braços, e aquela porcaria se virou na minha direcção, tendo feito tombar uma vela grossa e seu castiçal metálico, redondo como uma bola, que se encontravam em cima da placa de contraplacado ordinário. E ela sem mexer uma pálpebra noutra direcção que não fosse a do monitor. Perguntei-lhe então o que é que tem para hoje?, ao que, à laia de resposta, me entregou uma pasta com algumas dezenas de folhas lá presas, cuja capa transparente deixava ver uma tabela, igual a um horário escolar hiper-preenchido, contendo os menus da semana toda e, eventualmente, de todas as semanas do ano. Tive que fazer cálculos mentais para me lembrar que estávamos em quinta-feira. Reclamei, num desperdiçado sorriso, que, de facto, uma tabela em que o menu se apresenta em letras tamanho 8, brancas, sobre fundo cinza claro, nem que eu fosse um lince seria capaz de lê-la. Ainda assim, não respondeu, não se mexeu nela um único fio dos cabelos pretos e sujos. E eu ganhei olhos de lince por segundos e li lasanha vegetariana. 
Ali sentada, inspeccionei a porta à minha direita, que deixava antever um pequeno corredor, ao fundo do qual se encontrava uma casa-de-banho semi-ocupada com balde, esfregona e talvez mais coisas. Havia ali também uma porta, que dava acesso à cozinha, que eu preferi não espreitar. Quando a porta se fechou, li-lhe "Área exclusiva do pessoal". O chão, numa imitação de madeira cinzenta, encontrava-se em péssimo estado, como se tivesse sido — e, provavelmente, foi — cenário de várias inundações e algumas limpezas com produtos impróprios.
Tinha acabado de fazer o meu pedido, após o qual a mulher levantou o rabo da cadeira — ou aquilo que deveria estar no lugar dele, pois que tinha a zona sacra totalmente achatada —, enfiou a cabeça por uma pequena janela de acesso à cozinha e gritou "Ó colega", procedendo à transmissão do meu pedido. Voltou a sentar-se, atendeu um telefonema e disse, por diversas vezes, a palavra "você".
Houve um décimo de segundo em que considerei a hipótese de entrar um anão que desatasse a dançar em chão de ziguezague, mas não: entrou o estafeta, com o saco da distribuição vazio, e pareceu-me que vinha de fraldas. Afinal, eram umas calças de fato de treino, justas ao longo da perna grossa, e bastante largas no rabo. Quando tirou o capacete, verifiquei que só tinha cabelo no alto da cabeça, tal e qual um manjerico, muito negro, muito farto, em perfeito pendant com as sobrancelhas, duas hirsutas cabeleiras pretas. Não me custou a crer que se tratasse da reencarnação de um lenhador que, à noite, se fizesse lobisomem.
A lasanha estava muito boa.


1 comentário:

  1. Eu gosto deles menos doidos, sou muito básica para entender esse tipo de filmes!

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