20/12/2023

Ainda existem mulheres honestas

Quem nunca? Eu já. Uma vez riscara meu boi na garagem, numa primeira septingentésima sexagésima terceira vez em que fiz a manobra e até já a executaria de olhos fechados, mas parece que a p. da parede nesse dia avançou em continência e boi foi raspar-se nela. 

Desta feita, encontrava-me na subida de uma rampa e tinha à frente cerca de três automóveis, todos com intenção de seguir em frente — visto que não tinham o pisca para a esquerda (única alternativa para além da de andar adiante) —, sendo que eu queria ir para a esquerda e eles não me desempatavam o caminho. Até onde a vista alcançava (quase nada, pois a curva à esquerda me tapava a visibilidade para o que de lá vinha), não havia carro nenhum em andamento na faixa oposta, vai de arriscar (haha, muito bem aplicado) a sorte (que, como é do conhecimento mundial, é olimpicamente ínfima) e arranco para a esquerda com toda a convicção e força que o acelerador me permitia, logo assim dei por desfeito o ponto de embraiagem. De repente, senti um abanão para os lados e ouvi o inconfundível ruído. Porém, ainda tive dois décimos de segundo para equacionar se não estaria a ser protagonista de um tremor de terra. Assim que percebi que dera com as portas direitas na chapa do carro que estivera à minha frente e que as paralelas e tangentes não são o meu forte, só mesmo as secantes, avancei um nico para não estorvar nem inquietar os que estavam lá para trás, saí de Rosinha já a pensar acordo amigável - seguro - documentos do carro - meus documentos - assunção da porra da culpa (sem usar o cilício, também não devia ser caso para tanto) - vamos a isto, que não há-de doer. Da viatura acometida, sai uma senhora a rir, e eu Ai tu queres ver que me saiu uma pior que eu? Tento acalmá-la? Dou-lhe um estalo para acabar com o histerismo? Chamo o 112 com uma jaula? Peço ali aos rapazes do hospital que vão buscar um dardo cheio de sonífero? Melhor não, a sorte vira-se sempre contra mim, vai na volta e o outro saía-me uma espécie de Tell sem pontaria, vinha de lá armado com a besta e eu ainda apanhava com a seta na testa como o do anúncio do "Fica quieto", "Ups". Estava eu perdida e sozinha nestes pensamentos, quando ela optou por explicar o gargalhedo, não fosse eu colapsar: "Minha senhora, já é a segunda vez que isto me acontece hoje". Convém confessar que eram apenas 10:30 da madrugada. Respondi-lhe: "Vá para casa, por favor, e só saia de lá amanhã". 

O lado esquerdo do carro dela estava todo riscado e amassado. Deitei dramaticamente as mãos à cabeça e perguntei: "Eu fiz isto tudo?". Honesta, podia ter aproveitado, "Não, isso já é de outras". Fui verificar o meu lado direito e havia riscas, sim senhor, mas nada de chocante, até se for fazer iguais do outro lado, parece que é um modelo diferente da marca. 

Concluímos que não havia nada a declarar, quais acordo amigável, quais quê, quase demos duas beijinhas e adeus e Boas Festas. Cada uma foi à sua vida, que a mulher tem mais com que perder tempo, quanto mais quando são duas. 

Homens? Era não ter avançado do local onde havia raspado, empandeirar o trânsito local e depois da cidade toda, era o acordo, era o telemóvel, era a identificação, era o telefonema para a companhia de seguros e para o amigo mecânico, era o croquis do sinistro, tudo muito sinistro.