Passaram por mim invisíveis, e ainda agora não sei como é que os vi, se mais ninguém, mas sei que os vi. Davam um ao outro o braço, o mesmo cuja mão arrastava um cesto de rodinhas, ainda vazio, e, com a outra, empurravam um carrinho de bebé, numa cadência de comboio cuja locomotiva, perdida e sem carvão, se encontra algures ali pelo meio, mas não certamente à frente. Semi-deitado, um rapazinho de cerca de dois anos dormia. Só os vi por estarmos num supermercado, eles serem tão idosos e a criança dormir tão profundamente — apesar da luz, apesar do som, apesar das hesitações no percurso, apesar de já não ter idade para dormir assim em condições assim. Depois reencontrei-os na caixa, o meu carro cheio de primeiras necessidades para um batalhão que as consumirá em poucos dias, o cesto deles leve, apesar do peso. E foi quando reparei que a ela lhe saía a aba de uma fralda pelo cós das calças legging pretas, tão velhas quanto ela, poídas e furadas numa das pernas. Ele tinha vestida uma camisa de xadrez sobre as calças de ganga, cuja fralda podia bem esconder igualmente essa outra fralda. A criança continuava a dormir daquela maneira desinocente que nunca deveria ser a do sono de um anjo. Não olhei para o conteúdo do cesto deles por pudor e cobardia, mas, essencialmente, porque tinha o coração despedaçado naquele momento.
Nunca devíamos envelhecer assim...
ResponderEliminarDiabo de corpo que desaba. Diabo de vida que entorta.
Beijos, Lindinha.
Não, Maria, não devíamos. Nem nenhuma criança de fraldas devia ficar aos cuidados de alguém que tem que mudar a sua própria. A miséria começa no berço e arrasta-se, corrosiva.
EliminarBeijos
Dói tanto tomar conhecimento de vidas tão tristes....
ResponderEliminarDói mesmo, Gaja Maria. Depois segue a vida e, por mais que fiquemos a matutar naquilo que vamos vendo, a impotência acaba por nos toldar a memória...
EliminarTenta antes imaginar que foi um dia sem exemplo. Que naquele dia o petiz fez tamanha birra q os avós cederam a ficar com ele umas horas.
ResponderEliminarTenho dias em que n tenho capacidadr de me angustiar mais com a "miséria" humana, seja ela de q espécie for.
Às vezes até faço raciocínios mais esdrúxulos, piorando a hipotética situação, para me torturar um bocadinho mais. Sou uma doente.
EliminarPoupa-te, menina, the best is yet to come 👶😘