Excelenticíssim@s Senhor@s,
Vai em cabeçalho por não poder ser em rodapé — sob pena de não me lerem o resto desta missiva, considerando-me preconceituosa (eh!) — a presente nota de cabeçalho: está com arrobas de arrobas exactamente porque assim não se distingue o género nem a tendência binária, trinária, tetranária, olhem, já ando tão perdida nas designações que inventaram para o que cada um lhe apetece, que qualquer dia nos alocam por preferências de fruta. Sei que sou heterossexual, o que, bem feitas as contas, já parece um crime afirmar, pois parece logo que sou anti-tudo o que não o seja. E gosto de dióspiros, cajus, leitãozinho da Mealhada já não quero gostar porque ai os porquinhos de leite, mas, se me dissessem que só podia comer um único alimento para o resto da vida, escolheria mesmo o amendoim, que marcha até em pasta para barrar, mas às colheradas.
A vida continua, engordo fielmente na barriga, qualquer dia só me avio em lojas de pré-mamã. Não há problema, sou tetra-pós-mamã, que é quase o mesmo. Continuo a dançar, deixa cá ver: todos os dias, menos quinta, porque não gosto de quintas-feiras. Tenho este problema há anos: abro o roupeiro, atiro mil coisas para cima da cama, umas não me servem, as outras fazem-me parecer a mulher de Chelas, daí que acabo por, derivados ao cansaço, pôr a primeira albarda que me vem à mão depois da desarrumação. Ainda assim, sinto-me lindamente comigo mesma, devo estar a viver uma realidade paralela oferecida de bónus pela medicação. Dizia eu que danço seis vezes por semana. Ao contrário do que anuncia o Instagram nos intervalos do meu jogo, a dança não emagrece. Nem um grama. Sobretudo se, como eu, devorarem tudo o que é doce que vos passa nem que seja pela visão periférica. Ontem foi o último dia. Vou experimentar a dieta brasileira: tem fome? Bebe água e come gelo. Talvez não tão à risca, mas uma coisa equivalente, sem gordalheiras.
A minha podóloga desencravou-me as duas unhas dos polegares dos pés, ainda consequência da quimioterapia, que já lá vai há dois anos. Achei-a óptima e, quando acho alguém óptimo, sou compelida a começar a depenar a conta bancária com essa pessoa. Ela convenceu-me (nem precisou de muitos argumentos) de que eu precisava de umas palmilhas, dado que tenho os pés chatos. Disse-lhe imediatamente que sim, paguei-lhe o equivalente a um par de sapatos (três, se forem da Temu*) e ela fez os moldes. Folguei em saber que o esquerdo é mais chato que o direito, o que me trouxe a vantagem de poder chamar "chato!" a quem me aporrinhe a paciência, com a desculpa de que estou a falar com o pé. Entretanto, ela traz-me as palmilhas já feitas, diz-me para andar com os ténis e elas por casa até à corrida que ia fazer dois dias depois, mas não me apeteceu porque estava calor, porque o pezinho de princesa gosta é de andar com os porquinhos à solta, de modos que, na manhã da corrida, vai de meter as palmilhas, duras que nem um corno, dentro do téni e do outro também, e ala para a corrida, convencida de que aquilo me ia transformar numa gazela e faria os cinco quilómetros em duas ou três pe(r)nadas, qual milagre de Natal. A dita corrida (EDP**), e eu sabia por não ser a minha primeira vez (mas foi a última) é do mais desorganizado que há: os que caminham e os que correm partem ao mesmo tempo — de modo que, ao início, não corremos, fazemos slalom entre muros de gente —, não há chip para a corrida, para controlar o tempo de cada um, o pavimento consegue ser pior do que o da Expo, com calçada solta de um metro de largura, e pedras, e areia solta, e asfalto cheio de buracos, enfim, o fim. A pessoa correu dois quilómetros, já os pés gemiam "tira-me esta m.", o meu pensamento "chatos, chatos", até que avistei o stand da Vitalis* e comecei a andar porque percebi que não iria conseguir correr mais quinhentos metros só para salvar a minha vida. Outra desorganização: paletes por abrir, velhos mal dispostos, a dar alento ao povo, só porque esticávamos a mão a pedir uma garrafinha: "Mas vão ganhar alguma coisa só por terem uma garrafa?". Fui, óbvio, a única pessoa que respondeu: "Meu avô, temos sede!", enquanto estendia a mão para a garrafa de uma senhora que já tinha conseguido a dela, não percebi se porque a confundi com uma hospedeira de eventos ou se lha ia roubar, mesmo, tal era a minha transtornação naquele momento. Os pés já gritavam que se suicidavam, bebi a água toda, mas isso não me valeu de nada. Continuei a caminhar, fiz os restantes três quilómetros ainda não sei como, mas sei que cinco — CINCO — pessoas me vieram perguntar se eu estava bem e três delas, não acreditando no meu sorriso azul-turquesa, "Estou bem, muito obrigada", deram-me garrafas de água. Entretanto, deu-se início em mim a umas dores nas costas ao nível da cauda equina, e acho que só doeu mais porque nunca na vida tinha tido dores nas costas. Atravessei a meta com a sensação de já não ter pés e de que ia passar o resto da vida a andar de gatas. Deram-me um gelado da Olá*, uma medalha de participação que pesa um boi e queriam dar mais água, mas lá estava o avô da Heidi na distribuição e eu prescindi. Faltavam trezentos e cinquenta metros para o estacionamento da Champalimaud e ainda tive que descansar a meio do percurso. Ia apoiada na minha companheirinha de sacrifícios, que tinha levado menos de meia-hora a cumprir aquela maratona para IronWoman, é pequeníssima e leve como uma pluma, imagine-se o cenário. Agradeceria uma maca, ou um gorila que me carregasse.
Conduzir foi fácil, ia sentada. Mas chegar a casa e esparramar-me no sofá, foi tão duro que, só por isso, merecia outra medalha.
Não sei onde enfiei as palmilhas. Sei só onde gostaria de as enfiar.
Com estima, amizade e dores,
Linda Blue
* NMPPI
** Ninguém me paga para me calar