Estávamos à espera de começar a dançar, ambas sentadas a beber água — hidratar antes, durante e depois —, ela muito jovem, muito generosa de carnes, os olhos sempre numa tristeza de dar dó e mimo, mas a gargalhada mais fresca e absoluta dos meus últimos tempos e, seguramente, a melhor dançarina de uma sala com trinta e sete lugares, invariavelmente todos ocupados. Falámos do dia em que me senti mal a meio da aula, na verdade foi logo ao início, mas forcei-me a ficar até faltarem só uns minutos, para sair de rompante sem correr, umas quantas piruetas haviam-se transformado em dezenas e puseram-me em looping, já tinha feito uma sessão de quimioterapia e achava que podia continuar a fazer a minha vida, porque a vida continua. Nesse dia, ela tocou-me num braço só ao de leve, apenas as pontas dos dedos, os olhos naquela tristeza de sempre, e contou-me que a minha mãe também teve e está óptima. Então agora recordámos esse dia, ela confirmou, foi há treze anos, a mãe continua excelente, mas o cancro levou-lhe o pai, os olhos a afogarem-se na mágoa, Tenho tanto medo de ter cancro, eu a pensar que mudei de dimensão, de prisma, de óptica, a palavra já não me faz medo, o significado dela também não.
Tenho tanto medo de ter uma recidiva. Mas a vida continua, como já continuava antes de ter mudado de dimensão.