em que ligas para o consultório do dentista dos olhos bonitos — não pões lá os pés nem os dentes há mais de um ano, e ouviste dizer, leste ou sonhaste que a radioterapia amarelece os dentes, não que tenhas notado, mas já agora —, e te atende Sónia.
Sónia, para quem tem memoráveis hiatos de memória, é a assistente do dentista, que está certamente apostada em asfixiar-me através da aspiração das minhas amígdalas (“amigas” para o povo), e que, com a desculpa assente nas cavalitas das muito largas costas do Covid, me entrava gabinete adentro com duas máscaras, uma viseira, uma touca, uma bata descartável completa, com mangas compridas e até aos pés, e luvas. Sem dúvida, para me aniquilar sem deixar vestígios, se não com o aspirador do cuspo, pelo menos de susto.
Pergunta-me Sónia se estou “melhorzinha”, eu que sim, que já acabei os tratamentos há três semanas, ela então manda o primeiro tiro e eu sem perceber, “Então já teve alta do médico para vir ao dentista?”, como se estivesse a perguntar-me se já podia ir à praia ou correr a maratona em flic flacs, eu encharcada em nervos e paciência, “Sónia, eu já acabei a radioterapia há três semanas, posso e devo ir ao dentista. Certamente que não sou a primeira pessoa que consulta o senhor doutor nesta fase da doença”, e então dá-se o momento em que ela me atira a segunda bala, que poderia ser fatal, não estivesse eu habituada a lidar diariamente com humanos: “Via oral?”.
Não fiquei imediatamente estupefacta porque achei que ela se tinha enganado/ baralhado/ embebedado entretanto. “A radioterapia?”, “Sim.”
Pois, morreu-me um neurónio.
“Sónia, o nome diz tudo: radioterapia é por radiação, não existe em comprimidos.”
“Ai é?”
Quando desliguei, tive vontade de chorar um niquinho. Então, como sempre, ri até à pré-asfixia. Eu bem digo que aquela mulher um dia me mata. Se eu não voltar aqui, já sabem.