22/12/2021

Sedação e obstipação

A razão das minhas histórias, actualmente, é sempre a mesma: estou embrenhada num admirável mundo novo, em que, lá está, tudo é uma novidade.

Outro dia fui pôr um cateter permanente, a ver se as veias não fritam com os tratamentos. Ia convencida de que era chegar, abrir, mete lá o plástico e cose. Quando me mandaram ir em jejum, comecei a desconfiar que ia passar o dia com os ritmos biológicos todos baralhados. Mas pronto, lá fui. Um aparato de despe e veste só uma bata (e umas cuecas que nem a minha avó algum dia), bloco, anestesista, “vamos só dar-lhe uma sedação, não é anestesia geral” (eles temem-me, porque a quantidade das que já fiz não cabe nas linhas todas dos relatórios deles), gente de touca e coisas metálicas nas mãos, todo um cenário de cozinha que me dizia “Olha agora…”. Mas ainda bem que sempre fui, mal me espetaram a agulha na mão, já a veia espichava e foi chato. Vá, fizeram aquilo, ou melhor, isto (que é só horroroso, vê-se perfeitamente uma peça de plástico entre o seio e o ombro), a mim a sedação deu-me para a moca, que nunca mais os ouvi, mas, pelo menos, deu para levar um elogio, “Dona Maria, portou-se muito bem”. Se calhar até ressonei, de tão bem comportada fui. Os outros operados da sala de recobro foram todos marchando, um a um, todos intervencionados depois de mim, mas eu sou de aproveitar as lanzeirices até à última gota e xonei-as ali três horas, que foi um regalo e, convenhamos, uma aflição para a minha família. É não me drogarem.

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Nessa mesma tarde, indigitaram-me a estar num outro serviço, para colocar um clipe no tumor, não vá ele tornar-se invisível e o cirurgião, aquando da operação que virá para o ano, já não o encontrar. Então, fui, sem saber se havia de me pôr outra vez em jejum, mas, à cautela, com um naco de tofu mais couscous para aconchegar. Esperei educadamente na sala de espera, isto passou-se uma hora, ele passaram-se duas e nunca mais chegava a minha vez. Lembro que estava drogada, por isso precisava de curtir a minha trip sem que ninguém me moesse o espírito. E tinha um senhor já com idade para ser irmão mais novo do meu pai com os olhos pregados em mim. Certo que podia estar apenas interessado em verificar se eu adormeceria efectivamente — dada a evidência de que o ia fazer —, ou a apostar consigo mesmo quantas vezes o faria no espaço de um minuto, por exemplo. Experimentei mudar de lugar, até mesmo para me recatar melhor, e lá veio o homenzinho atrás de mim, para se pôr exactamente à minha frente, olha o paradoxo. Entretanto, ao telefone com a respectiva sponge. Um clássico, quem não sonha uma adolescência inteira com este exemplar? Estimo que ela o chifre na mesma medida. 


De todo o modo, adormeci. Que bom é termos que usar máscara em locais públicos fechados: dá para, caso seja o caso, dormirmos de boca aberta e tudo. Até o fiozinho de saliva pode aflorar num canto, ou mesmo nos dois, pois aquilo há-de absorver. Bom, assim que me chamaram, fui para o gabinete do médico, ainda me encontrava naquele mesmo transe, e fui até um pouco contrariada de não me darem mais um par de horas para descansar na sala de espera. Não entendi por que é que chamam clipe àquilo, podia perfeitamente ser agrafo ou pionés, ou até anzol, uma vez que o médico nos espeta um agulhão arpão na mama para lá o colocar. Se tive medo/ dores/ puns mentais? Oh, filhos, eu apanhei-me numa horizontal e já só acordei ao som de “Acorde, Maria. Ou quer ficar aqui a dormir?”. Sim. A resposta era sim.

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Ainda estou indecisa se um destes dias aqui explico, da forma menos gráfica que conseguir, a verdadeira acepção do termo “obstipação”, que é outra das alegrias oferecidas de borla pela quimioterapia. Adianto apenas que agora sei o que sente uma bovina nos segundos imediatos do pós-parto: orgulho. Muito orgulho. E uma breve dúvida, no que serão os possíveis pensamentos da puérpera em questão: “Olá… Será que isto ainda me vai dar uma marrada?”.