Fui despedir-me dos velhinhos. A minha mãe vai para casa e já não volto a vê-los. Estive um bocado na sala, a olhá-los bem, a disfarçar a minha incapacidade para cometer despedidas - eu cometo despedidas, como crimes imperfeitos -, pintando as unhas de encarnado vivo, a adiar o momento em que, de unhas encarnadas, me haveria de pôr de pé e sair dali. Ainda pensei dar largas à minha fraqueza armada em fragilidade e sair sem dizer nada, um aceno de mão para todos, "Até amanhã", uma mentira sem consequências, por não ver as caras nem sentir os corações enganados. Pus-me de pé, de unhas encarnadas, e, no momento em que podia ter fugido escadas abaixo, encarei com a dona Cândida, que foi rabujando cada vez menos à medida das minhas visitas - ou habituei-me, ou ela amansou o génio - e fui andando na direcção da cadeira de rodas dela, agarrei-lhe a cara com as duas mãos e dei-lhe um beijinho na bochecha, depois no cabelo, e disse "Adeus, minha querida".
A seguir, a dona Odete, a cadeira da dona Odete, que eu tantas vezes empurrei em direcção ao sol - que o sol lhe tira as dores das costas - "Adeus, minha querida", "Obrigada por me ter vindo dar um beijinho", "Ora essa, beijinhos não se agradecem",
depois a dona Júlia, "Fique bem, minha querida, cuide de si", "Ah, veja se fica tudo bem, se não há problemas para a semana, que eles depois vão lá..." - ela um dia explicou-me que enlouqueceu, e eu sei e percebo, no lugar dela, onde nenhuma mãe quer estar, eu também enlouqueceria - "Fique descansada, vai correr tudo bem",
a seguir, a dona Manuela, a dormir como uma criança, fiz-lhe uma festa no braço de criança, ela despertou ligeiramente, "Vou-me embora, minha querida, já não volto cá", "Obrigada pelo seu beijinho", "Eu não quero obrigadas pelos meus beijinhos, são todos seus agora",
depois a dona Berta "Dona Bertinha, venho dizer-lhe adeus, vou-me embora", os olhos azuis da dona Bertinha, que dorme com um dedo na boca, "Filha, eu queria dar uma coisa à tua mãe antes de ela se ir embora, mas tenho medo que ela fique aborrecida", "Diga-me o que é, dona Bertinha, com certeza que a minha mãe não vai ficar aborrecida com a senhora", e, num suspiro de criança que faz um esforço mental na escola, "São vinte euros...", tanto beijinho que levou aquela carinha lisinha e branca, aquele cabelinho lisinho e branco,
depois fui despedir-me da senhora condessa, que eu achei que era treta, mas não é, a condessa num lar, às 11 da manhã aos gritos "Vão lá acima buscar a minha bicicleta, que eu quero ir almoçar!", bicicleta feita cadeira de rodas, lá em cima do quê, se está no último piso de uma casa?, última estação daquele comboio, "Vai-te embora!", para mim, sempre desejando que eu me fosse embora porque, à despedida, nos dizíamos mutuamente, as mãos dentro das mãos, "Adeus, minha querida", mas hoje foi mais para sempre, não foi até amanhã, "Adeus, minha querida, deixe-me dar-lhe um beijinho", e demos beijinhos, a senhora condessa e eu.
Uma a uma, um a um, despedi-me de todos e vim cheia de carinhas risonhas, de pedidos para voltar, de promessas de chocolates.
A seguir, a dona Odete, a cadeira da dona Odete, que eu tantas vezes empurrei em direcção ao sol - que o sol lhe tira as dores das costas - "Adeus, minha querida", "Obrigada por me ter vindo dar um beijinho", "Ora essa, beijinhos não se agradecem",
depois a dona Júlia, "Fique bem, minha querida, cuide de si", "Ah, veja se fica tudo bem, se não há problemas para a semana, que eles depois vão lá..." - ela um dia explicou-me que enlouqueceu, e eu sei e percebo, no lugar dela, onde nenhuma mãe quer estar, eu também enlouqueceria - "Fique descansada, vai correr tudo bem",
a seguir, a dona Manuela, a dormir como uma criança, fiz-lhe uma festa no braço de criança, ela despertou ligeiramente, "Vou-me embora, minha querida, já não volto cá", "Obrigada pelo seu beijinho", "Eu não quero obrigadas pelos meus beijinhos, são todos seus agora",
depois a dona Berta "Dona Bertinha, venho dizer-lhe adeus, vou-me embora", os olhos azuis da dona Bertinha, que dorme com um dedo na boca, "Filha, eu queria dar uma coisa à tua mãe antes de ela se ir embora, mas tenho medo que ela fique aborrecida", "Diga-me o que é, dona Bertinha, com certeza que a minha mãe não vai ficar aborrecida com a senhora", e, num suspiro de criança que faz um esforço mental na escola, "São vinte euros...", tanto beijinho que levou aquela carinha lisinha e branca, aquele cabelinho lisinho e branco,
depois fui despedir-me da senhora condessa, que eu achei que era treta, mas não é, a condessa num lar, às 11 da manhã aos gritos "Vão lá acima buscar a minha bicicleta, que eu quero ir almoçar!", bicicleta feita cadeira de rodas, lá em cima do quê, se está no último piso de uma casa?, última estação daquele comboio, "Vai-te embora!", para mim, sempre desejando que eu me fosse embora porque, à despedida, nos dizíamos mutuamente, as mãos dentro das mãos, "Adeus, minha querida", mas hoje foi mais para sempre, não foi até amanhã, "Adeus, minha querida, deixe-me dar-lhe um beijinho", e demos beijinhos, a senhora condessa e eu.
Uma a uma, um a um, despedi-me de todos e vim cheia de carinhas risonhas, de pedidos para voltar, de promessas de chocolates.
Fui despedir-me dos meus velhinhos. Eles agora são meus.
Gostei muito. Muito.
ResponderEliminarVindo de quem vem, sabe-me a chocolate, isso.
EliminarÓ meus amigos....mas isto agora vai virar hábito?!?!?! Esta coisa de me marejar osjónhinhos...tu não vês que me borras a pintura mulher e eu estou a trabalhar...ainda por cima fui ler o post dessas pérolas...e foi a desgraça. Sabes...a minha sogra (minha mãe de coração) tem quase 90 anos...e perdeu um filho era ele uma criança...trás essa dor com ela há 50...
ResponderEliminare de cada vez que a abraço percebo que é algo que ainda hoje a faz estremecer...
Percebo-te bem, tenho pelos velhinhos uma quase devoção:) jinhoooooosssss minha Linda (e todos os dias te vejo um bocadinho mais Linda...e isso é bom!)
Tenho que passar a prestar mais atenção às horas a que publico, ou tu às horas a que lês... :)
Eliminar"É um prego espetado no coração para a vida toda, nunca deixa de doer", disse uma vez uma mãe dessas :(
São muito especiais, são uns sorvedouros de mimo, mas nunca pedem nem cobram. Já desistiram, e isso é tocante.
Também consigo ser Porca, passa-me cada alarvidade pela cabeça e pelo blogue :)
Beijinhos, Suri, obrigada.
Tens um dom.
ResponderEliminarNão, não :)
EliminarEles têm.
:)
ResponderEliminarTudo a sorrir :)
EliminarEscreveste de uma maneira tal que consegui imaginar cada cena e cada um dos teus velhinhos. E comovi-me. Muito.
ResponderEliminarFoi assim mesmo, tal e qual, sem acrescentar nada. Nem alterei nomes. Eles existem todos assim mesmo :|
EliminarJá pensaste em fazer um livro? Tens histórias de vida lindas. Vá, faz lá isso e verás o teu nome na ribalta.
ResponderEliminar:) Não.
EliminarE não sei se quero o meu nome na ribalta...
Obrigada, anyway.
caramba, não havia necessidade! havia, havia, é que com frio que está lá fora e a ternura que estas palavras contêm, já me aqueceram e reconfortaram muito, mas muito! quando for velhinha, vais-me ver!
ResponderEliminarVou pois, porque vou manter-me sempre com a idade com que estou hoje :)
EliminarE levo-te chocolates.
E tu fazes-me desenhos com o teu lápis e contas-me aquelas short stories tuas.
fica combinado. mas olha que eu tenho também histórias muito compridas? terás paciência? e se me levares chocolates, dás-me o"combustível" ideal! verborreia; o meu nome do meio!!!! :)))
EliminarTenho paciência, sim, claro que tenho :)
EliminarEspecialmente, se tiverem a qualidade dos teus posts!