03/09/2025

Eu agora perco

Acho que nunca fui roubada na vida, que me lembre ou tenha dado por isso. Perco coisas, mais do que pessoas, e só faço esta comparação porque, torturada com a crítica de que guardo tudo, mudei para o lema seguinte: Se as pessoas acabam, por que é que as coisas não hão-de acabar? Assim, tornou-se mais fácil deitar fora tesouros antigos, inutilidades queridas, coisinhas que ainda poderiam vir a fazer muita falta, mas que depois, não sei porquê, nunca fizeram. Perco coisas dentro de casa, de tal modo, ainda assim, tenho gavetas e móveis atafulhados de tudo o que só eu gosto, porque escolhi, porque usei em acessos de alegria e festa, porque não servem a mais ninguém, toda a gente é magra, toda a gente é gorda no meu país das maravilhas. Mas também ofereço às filhas, ponho à venda — e vou ao Correio com aquela falta de ar das despedidas —, dou à que fala muito, meto nos contentores — lavado, passado a ferro, dobradinho num saco fechado como um presente —, ou encafuo no lixo, mesmo a rasgar o fundo do saco, que corresponde ao diabo que o carregue, quando estou na raiva, porque já não serve para nada, deu-me azar, só teve utilidade para chorar um dia, nem para trapos terá serventia. Assim, estou convencida de que as minhas coisas ganham perninhas em casa, algumas delas não gostam de mim, outras estão num tédio que querem lugares mais arejados e gente mais viva do que eu, e então partem, para não mais voltar, pois jamais as revejo. Na rua, tenho a certeza de que ganham asinhas, caso contrário teria encontrado aquele brinco que perdi na praia este ano e, horas volvidas, lá fui ver dele, só me faltou peneirar o areal todo, mas sei que só não o encontrei devido às asas ou então ficou debaixo do rabo de alguma pessoa estendida ao sol e depois o mar levou, que é onde ele será mais feliz. 

Vinha aqui contar que este ano já tomaram outros caminhos um par de óculos de sol — que eram o meu amor amado sob a forma de óculos, estive a isto de chorar, foram tão caros, tinham dez anos, as melhores lentes que algum dia usei, não me escorregavam pelo nariz abaixo, tive que correr o globo por uns iguais, nem a marca já tinha reservas, lá fui ao mercado dos aflitinhos e zás, um quarto do preço de há dez anos —, o tal brinco, um anel fininho de prata pelo qual sentia bastante simpatia porque representava o ciclo da vida — foi o que me disseram na loja e eu engoli, a pensar "Mas o que raio é o ciclo da vida? E por que raio tenho eu que o amarrar ao dedo?", quando na verdade eu gostava era do anel no meu dedo pequenino e até já comprei outro igual, também sumiu do meu radar outro anel igualmente do ciclo da vida [she´s a maniac], mas mais pequeno, um ciclinho, uma vidinha, que a que fala que se desunha encontrou numas luvas de nitrilo que eu tinha usado para fazer o bolo de aniversário do meu bebé, que olhem, não tardam muitos dias, vai para longe de mim, não sei o que será feito de mim, se calhar perdida, não sei como vai ser ele longe e eu cá, a perder coisas, paciência, desde que não perca pessoas, está tudo na boa das saudades infernais.