30/06/2022

Gente que não sabe estar

Era eu querer, e todos os dias teria episódios desta minha surpreendente existência para relatar. A ver se amanhã não me esqueço e me sobra tempo para contar a do António e os dedos no rabo. 

Agora que me tornei uma assídua frequentadora de salas de espera, parece que se desdobram cenas diante de mim para me fornecerem conteúdo aqui para o buraco. Também se confirma que os loucos sentem uma atracção irresistível pela pessoa humana. 

Então, estou sentada numa cadeira que fica na ponta de uma fileira delas, aguardando que me chamem para tomar uma pica na coxa, e há um bombeiro/ cuidador/ filho que coloca a cadeira de rodas de um senhor de idade mesmo ao meu lado, mas em perpendicular, ou seja, com a cara do homem virada para o meu perfil. E quem o empurrou até ali, pirou-se não sei para aonde, já vamos perceber porquê: o homem dá em tossir levemente e puxar escarretas fortemente, a um ritmo, vá (não cronometrei, mas em média), de uma langonha a cada dez segundos. Apercebi-me de que não as cuspia, pelo que presumi, levemente incomodada, de que as engolia. Mas, lá está, isto de ser bem educada é uma grandessíssima merda, pelo que comecei por decidir aguentar, depois aquilo foi num crescendo de insuportáveis sons da parte dele e agonia da minha, e nessa altura pensei que, mal o altifalante chamasse um nome feminino, levantava-me e fugia para a sala ao lado. Mas nada, exactamente porque é sempre assim comigo: a voz só chamava homens. Estive mesmo para me fazer flausina e levantar-me dali ao som de "José Silva à sala de tratamentos", a abanar o codril. Quando atingi o pináculo da aflição gástrica, levantei-me, desconsiderando a possibilidade de o velhote se e me ofender por sair de perto de tão agradável companhia e fui sentar-me na sala ao lado. Porém, os sons escarratórios do homenzinho ouviam-se com a mesma nitidez, tal e qual estivesse dentro da minha cabeça — e, pelos vistos, de todas as pessoas que estavam nesta outra sala. Deu-se então que uma senhora extremamente africana se revoltou com o ruído dimanado pelo outro, e começou a berrar-lhe algo como "Não sabe estar, ó!?", sendo que o Ó não lhe ligou nenhuma e continuou com a sinfonia expectórica. Nesse momento, ela recebeu uma chamada no telemóvel, que colocou em altos berros alta voz, e em que gritou a plenos pulmões para a sua interlocutora, num crioulo completamente perceptível, qualquer coisa acerca de um balde do lixo que o raio do velho lhe partiu porque se sentou nele, mas que lhe ia pagar, cena que durou seguramente oito ou nove minutos. 

As viscosidades bronco-pulmonares do idoso tornaram-se, assim, white noise, se é que isto é possível. Ficou uma sala cheia de gente com a atenção suspensa na saga velho, mais balde do lixo, mais compensação em espécie. E eu, uma vez que já tenho um lugar garantido na quinta subcave, ou porque me enervei muito, tive um ataque de riso, silencioso, é certo, mas daqueles que nos sacodem como se estivéssemos a ter um espasmo. Valeu lágrimas e tudo. Pode ser que o Hades me ensine a estar.