27/03/2022

Distâncias

Desde que fiz a transição de um hospital privado para um público, ainda não tive uma consulta com a médica que me foi atribuída. Isto não é uma queixa, é uma constatação de facto. As consultas são de três em três semanas, na primeira e única até agora, a minha médica foi substituída por uma colega que, coincidentemente, foi a mesma que me atendeu ao telefone numa necessidade, e depois numa consulta de urgência. Tudo estaria bem, não fora o facto de esta substituta ser uma maçarica com zero empatia comigo, logo, consequentemente, amor com amor se paga. Digamos que eu não tenho propriamente culpa de ter rebentado com o plafond do meu seguro, nem de que ela tenha uma situação precária no emprego que arranjou (não consta da folha de médicos efectivos no hospital e, aparentemente, está sempre de urgência). Eventualmente, também não terei culpa de estar doente e de ela ser médica da especialidade que pode tratar-me. Mas já começo a ficar nervosa com o posicionamento das sobrancelhas da pessoa: nunca estão cá em baixo, tranquilas, nem lá para cima, espantadas. Estão sempre naquele meio caminho, diga eu o que disser, pergunte eu o que perguntar. E, convenhamos, eu só faço perguntas cuja resposta é imediatamente importante para mim, porque a última coisa que quero é ficar a bater papinho com uma azeda que me exponencia a ansiedade. 

Esta semana que passou, tive que me dirigir à urgência porque unhas, porque pus, porque dores, porque descolamento de algumas, porque antibiótico no sexto dia e nada de ver melhoras, e mais não adianto, que isto é um espaço sério, não é para as pessoas virem para aqui vomitar. Estava um dia chuvoso, então vesti-me de calças quentinhas, casaco grosso e havaianas. Chegara a um ponto em que era humanamente impossível não andar quase descalça. Assim me apresentei no gabinete das urgências, onde fui encontrá-la. Mal me viu, mandou-me esperar um minuto à porta, porque ainda precisava de acabar uma coisa. Imagino que algo a ver com o jovem colega que também ali estava, mas então não me chamasse pelo altifalante, que eu até lhes dava dois minutos, quanto mais um. Ao fim de sessenta segundos, disse-me que entrasse. Constatei que a cadeira do paciente estava a, pelo menos, três metros da do médico, e, como não ia ali propriamente para assistir a um stand up nem me apetecia gritar para o palco/ plateia, arredei a cadeira para a frente antes de me sentar.

- Deixe estar a cadeira onde estava, por causa do distanciamento, devido ao covid.

Isto, vindo da mesma pessoa que já me apalpou as axilas e zonas adjacentes. Se calhar, não gostou. Oh, wait, eu estou a gostar muito de estar doente e de ter que levar com estas, já para não falar da cena das unhas, das dores no corpo, do cansaço, e agora calo-me. Fiquei assim ligeiramente atordoada, a pensar se teria feito uma viagem no tempo e estaríamos de volta à quarentena, mas lá me sentei com o distanciamento que o covid dela impõe, um bocado a pensar como é que ela pretendia ver o meu pé àquela distância, mesmo que eu esticasse a perna toda.

Esta pessoa leva-me a questionar-me sobre o motivo pelo qual escolheu Medicina e, mais tarde, oncologia. Foi tudo uma questão de média aritmética nas notas do secundário e depois do curso? Tinha verdadeira vocação, que se lhe sumiu pelo ralo desde o primeiro doente que não conseguiu salvar? Prometeram-lhe que ia ficar rica e isso ainda não aconteceu? Tinha ainda menos vontade de escolher outra especialidade? Só não gosta de mim porque me pôs o rótulo de tia que faliu do privado e agora vem para aqui sugar do SNS?

Filha, eu repito: estou doente e tu és médica. Preciso de me tratar e tu, a contragosto ou não, juraste um dia fazê-lo. Não precisamos de ser amigas, mas também era giro poupares-me a mais uma sobrecarga, que é esse teu humor de merda.

(Sim, ainda estou na raiva. Duvido que algum dia saia dela, ou ela de mim.)