07/10/2019

como é fino o manto da violência

Os meus olhos pousaram naquela menina que cirandava, esvoaçante, em volta da mesa da esplanada onde se encontravam alguns adultos, podiam ser dela parentes ou apenas aparentemente aparentados, todos a ela alheios, ou até podiam não lhe ser nada. Tinha um pequeno laço no cabelo encaracolado, o vestido era de flores bonitas e calçava ténis de marca cara e visível. Imaginei-lhe uns quatro anos, talvez já cinco, perdidas as dobrinhas de bebé, não a candura infantil de quem ainda tem tanto para sonhar. E nisto, levantou-se da mesa uma mulher muito jovem, no semblante a contrariedade, pensei eu que por ter interrompido o café com os amigos, percebi logo depois que o motivo era então outro: a criança havia feito chichi na roupa, talvez à quarta ou quinta tentativa de que a mãe a levasse onde é próprio uma pequena adultazinha fazê-lo, não estivesse esta largada à sua sorte no meio de adultos grandes e surdos. Chocante foi a forma como percebi, eu e quem ali estivesse ou fosse a passar, que a menina havia feito chichi nas calcinhas: a mãe levantou o vestido de flores bonitas, agora tristes, e exibiu a roupa interior molhada da filha - aborrecida, zangada, ralhando. Ainda que nada disto houvesse feito, o vestido arregaçado, a roupinha devassada, os olhos pregados no chão, chegaram.

10 comentários:

  1. Nem acrescento uma sílaba que seja. Disse tudo :(

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    1. São chagas que ficam, depois cada um arranca-as (ou não) como pode... :(

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    2. Exactamente (ou não) depois achamos estranhos certos comportamentos, quando adultos.

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    3. Esses comportamentos devem estar sempre debaixo do tal manto. Não há violência física directa, não há grandes gritarias. Não é preciso.

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    4. Mas o efeito pode ser muito mais devastador psicologicamente falando. Penso eu.

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    5. Porque é silencioso. Não deixa nódoas negras nem marcas imediatas. Ninguém dá por nada, até um dia.
      Também não percebo muito do assunto, felizmente. Estou na plateia...

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  2. Tao triste Linda, tao triste. Tenho tanta pena que os adultos não compreendam o mal Que fazem às crianças que são tão puras e inocentes. Doi-me muito a alma.

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    1. Sim, e são atitudes tão subtis, quase invisíveis, que podem deixar as marcas mais escuras. Custa muito assistir a coisas destas sem poder fazer nada.

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  3. Existem pessoas que não nasceram para ser mães ... Ou para serem gente mesmo!!!

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    1. Ou sofrem um ponto de viragem quando se tornam mães. Não percebo é qual, nem onde, nem porquê
      :/

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