23/03/2016

Enquanto o mundo deambula como um louco, eu falo com os animais

E o meu coração dispara por nada. Não sei como é possível continuar vivo, se recebe os disparos que dispara, em ricochete, mesmo em cheio. Este constante sobressalto não pode fazer-lhe nada bem.
Cheguei a casa e não vi ninguém. Procurei pelas gatas.
(Também vou, muitas vezes, verificar se os passarinhos estão vivos. Obrigo-os a sair do fundo da gaiola, para os ver no poleiro, só para me certificar. Até parece que não sei que, se um deles resolver morrer, até o bebedouro lhe serve de último poiso. Mas fico mais descansada quando, assustados com o meu Ei, passarinhos!, em voz de comando militar — ou de mãe em pânico, que é quase igual —, aparecem, em alvoroço.)
A gata pequena, dormia. A grande, estava deitada em cima da manta dela, mesmo ao lado do aquecimento. Quieta, e de olhos abertos, parados. Fiquei, também eu, diante dela, quieta, e de olhos abertos, perscrutantes.
Olá, Mia.
E ela, nada. Os olhos, sobretudo os olhos, abertos, sem movimento.
(A Mel estava assim, quando a encontrámos, naquela manhã de sábado — deitada, parecia dormir, os olhos abertos, parados, a íris que fora dourada, transfeita negra.)
Estás bem, Mia?
(Será que eu espero que os animais me respondam? Estou bem, deixa-me em paz, ansiosa.)
(É proibido falar com os animais *)
Mia, estás bem?
E a bicha quieta. E muda. E surda.
Mia...
Perdida toda a coragem para verificar se o corpo estava arrefecido — aquela temperatura da Mel... — corri a casa e encontrei o rapaz.
- A Mia...
- O que é que tem?
- Está deitada e muito quieta. E tem os olhos abertos. E eu falei com ela, e ela não me respondeu. E...
O espelho diante de mim mostrava-me toda medo, os lábios descorados.
A gata envelhece todos os dias, assim como eu. Os períodos de descanso dela, a pouco e pouco, prolongam-se e acentuam-se, ao contrário dos meus.

~


* É proibido falar com os animais
(Conto de José Eduardo Agualusa)

João Abel dormia num banco do jardim. Acordava de manhã, muito cedo, e percorria a cidade inteira à procura de emprego. Regressava à noite, cansado, deitava-se no banco e adormecia. No meio do jardim havia uma jaula com macacos e rolinhas. Todas as manhãs João Abel parava em frente à jaula e via a placa. Estava presa em cima da porta e dizia: “É proibido conversar com os animais”.
O rapaz achava aquilo muito estranho. Os animais falam? Não, não falam. Os cães ladram, as vacas mugem, os gatos miam, os passarinhos trinam, gorjeiam, piam ou cantam; as abelhas zumbem, os grilos trilam, os lobos uivam, as rãs coaxam, os porcos grunhem, os cavalos relincham, as hienas gargalham, os leões rugem, os burros zurram, as baleias bufam, as cabras balem e os elefantes (aposto que não sabem) os elefantes bramam. Já os macacos, assobiam. E as rolas? As rolas arrulham. Falar, articular palavras, ordenar as palavras numa frase que tenha sentido, isso nem os papagaios conseguem fazer. Só os Homens.
“É proibido conversar com os animais”. João Abel achava aquilo tão estúpido quanto colocar um aviso no meio do jardim: “É proibido conversar com as magnólias”. Ou com as pedras, as nuvens, as paredes.
Por outro lado, supondo que os bichos na jaula realmente falassem, por que diabo não podiam as pessoas conversar com eles?
Se aquela placa não estivesse ali nunca lhe ocorreria a possibilidade de conversar com os animais. Assim, de todas as vezes que lia a estranha advertência João Abel ficava com vontade de se dirigir às rolas e aos macaquinhos. Porém tinha medo que alguém o visse. Além disso não sabia muito bem o que dizer. Não se lembrava de nenhum assunto que pudesse interessar ao mesmo tempo a rapazes, rolas e macacos.
Uma manhã acordou decidido a esclarecer aquele assunto. A única forma de saber se os animais falavam era falando com eles. Um belo sol de verão levantava-se sobre o jardim. O rapaz encheu-se de coragem:
- Vocês falam? – Perguntou. – Vocês podem falar?!
As rolas ignoraram a pergunta. Continuaram aos pulinhos, de poleiro em poleiro, ou esvoaçando através da jaula. João Abel teve a impressão de que uma delas dissera qualquer coisa – “estou rouca, estou rouca” -, mas não parecia ser com ele. Os macacos, esses, permaneceram estendidos ao sol, preguiçosamente, fazendo cafuné na cabeça uns dos outros.
João Abel repetiu a pergunta, mais alto, e nesse momento sentiu que alguém lhe agarrava os ombros.
- Não sabe ler?
O rapaz voltou-se, assustado, e viu à sua frente um velho de longos cabelos brancos. Antes que tivesse tempo para dizer alguma coisa o velho continuou:
- Eu escrevi esse letreiro.
Não estava zangado. Pelo contrário, parecia feliz.
- A maior parte das pessoas aceita qualquer coisa sem fazer perguntas – explicou o velho.
– Eu queria encontrar alguém que não tivesse medo de contrariar regras estúpidas. Alguém inteligente e curioso, porque a curiosidade é que faz mover o mundo.
O velho não tinha filhos. Era muito rico e não sabia a quem deixar a sua fortuna.
- Não quer trabalhar comigo?
Tudo o que João Abel queria era trabalhar. Aquele encontro mudou a sua vida. Aos domingos, porém, costuma ainda passear pelo jardim. A placa continua presa à gaiola. As pessoas lêem o aviso, encolhem os ombros, algumas riem-se, mas poucas se atrevem a contrariar a proibição. Mesmo que as rolas falem elas nunca irão saber.

8 comentários:

  1. O titulo deste magnifico post é um slogan que eu quero para mim. Levei, se me permite minha cara Linda Blue.

    Um Abraço

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    1. Sirva-se sem cerimónias, meu caro Impontual. Agradeço-lhe o comentário.

      Abraço

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  2. Eu também falo com os animais :) e muito até!
    E afinal a tua gatinha? Como ficou? O meu gato está doente...

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    1. E os loucos somos nós...
      Impecável, só está mesmo a começar a envelhecer :)
      Sabes o que fazer, leva-o ao vet (imagino que já levaste). As melhoras, Doc :)

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  3. Hoje quando fui levar macaquito na hora de almoço:
    -Mamã, encontrei um passarinho morto lá no politécnico.
    -Oh pobre passarinho.
    -Posso trazê-lo para casa à tarde?
    -Não vale a pena filho, então se já estava morto...
    -Mas tu dás-lhe xarope e eu ponho-o numa mantinha e ele fica bom outra vez.
    -Não me parece que vá resultar...
    -Claro que vai, até já tenho nome para ele.
    Também macaquito teima em contrariar, até a morte!

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    1. Eu percebo-o tão bem, Be. A morte é inaceitável, incompreensível, indesejadíssima.
      E gosto cada vez mais do teu macaquito. Será que não fomos irmãos gémeos noutra encarnação? :)

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  4. Eu também falo com os meus gatos. E quando chego a casar, se o mais velho não aparece logo a correr e a miar feito maluco ( ele até parece dizer "olá" e "mãe"), vou logo a procura dele. Normalmente, está tranquilamente deitado na cama dele à espera que eu lhe faça festas.

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    1. Cada vez mais me convenço que loucos são os que não falam nem "ouvem" os animais, Ana.

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