Está tão velho, o homem da loja de electrodomésticos. E a loja dele. E o bairro inteiro, com eles.
Aquilo era uma lojeca, quando eu vim para aqui morar, daquelas que vendem material eléctrico e algumas máquinas. O dono dentro da loja, a empregada de balcão a varrer a entrada, os dois rapazes do serviço externo a alternar entradas com saídas, pois era para essas que existiam. Ficava numa zona muito movimentada de comércio local, e era por isso, e não só por isso, que eu ia a pé, a empurrar um carrinho de bebé. Anos disto. Décadas.
O homem já me viu mais magra, já me viu mais gorda de tão grávida, já me viu mais nova, já me viu mais feliz, já me viu mais cansada. Eu só o vi menos velho. O cabelo e o bigode que, tão meticulosamente, há vinte anos pintava de preto, exibem, agora, cerca de cinquenta por cento de fios brancos. Os olhos, que antes pareciam dois alvos pretos, e começavam quase todas as frases por uma amiga minha, estão agora toldados com pequenas sombras amarelas, e fala-me de lâmpadas LED e assuntos que só ele entende, e eu já não acompanho.
Coitado, está tão velho.
(Eu estou na mesma.)
É capaz de já não se lembrar de mim de cabelo liso e lábios muito vermelhos, a querer ser uma mamã bonita e arranjada, com terror ao desmazelo. E de mim a entrar-lhe na loja com o cano do aspirador entupido por um par de collants e não ter uma explicação convincente para aquilo. E depois com a 1-2-3 com o motor partido, por ter tentado triturar chouriço para meter no caldo verde da bebé. Ou de o ter chamado por engripamento da máquina da roupa, quando tentei lavar um colchão de berço.
Era tão nova. Era tão cansada.
A loja mudou-se para a outra ponta do bairro, para um local onde só passam carros. Tem os mesmos ferros de engomar avariados, espalhados pelos cantos, as mesmas televisões que alguém um dia deixou para arranjar e já não voltou para ver o resultado. Uma delas, panorâmica, dá as notícias e toma conta do ar. Pouso a mala no balcão, afinal sou uma residente da área, quase da casa, temos à-vontade. Espreito lá para dentro e apercebo-me que não levei a lâmpada fundida que me serve para amostra da que pretendo levar. Ele ri-se, quando percebe o meu lapso e quando, sem uma palavra, saio da loja e volto ao carro para ir buscar a amostra.
Não mudei nada.
Ele vai buscar uma caixa cheia de pó e tira de lá uma lâmpada parecida com a que lhe mostro para amostra. Corre gavetinhas de plástico, onde guarda vários fios, que liga à ficha, para verificar se a lâmpada está boa.
A loja cheira a pó e ele tem cabelos e pêlos brancos no bigode.
Depois vem acompanhar-me à porta, a falar sobre instalações eléctricas.
Está mesmo velho, coitado.
Eu não mudei nada.
Ainda bem que não mudaste, pois, às vezes, as mudanças, nem sempre são para melhor.
ResponderEliminarBoa noite, Linda.
Beijinhos,
Mia
Ou tenho a ilusão que não mudei... :)
EliminarE, na essência, acho que está tudo na mesma. Nem quero que mude.
Beijinhos de boa noite, Mia.
Nós notamos mais o passar do tempo no rosto e nos gestos dos outros do que em nós.
ResponderEliminarMas mesmo com a forma mudada, há essências que nunca mudam.
Um beijinho, querida Blue :)
Claro, Miss Smile :)
EliminarA insistência na nota "Eu não mudei nada", é exactamente por saber que mudei. Só não naquela essência de ser tão desfocada. Quanto ao resto, mudei tantos anos quantos o senhor mudou...
Um beijinho, minha querida. Um dia feliz :)