era eu hoje, mais meu boi, a atravessar as águas tão plúvias que se esbategaram infirmes, firmamento abaixo, espelhando-se num espalhanço de brutal estardalhaço em plena A5.
Não me lembro de ter conduzido em autoestrada, alguma vez, no meio de tanta água. Não sobre as águas, mas através delas, daí o título disto. Sabem o que é não se ver um genital, um picinho que fosse? Assim era eu, com minhas zero vírgula vinte e cinco dioptrias, no meio do tudo, a tentar visionar algum obstáculo na via, não fossem os gatos todos lembrar-se de ir para ali passear hoje. Por acaso, ele surgiu, sob a forma de um carro branco, na faixa do meio, a cinquenta quilómetros à hora (eu sei porque me meti atrás e olhei para aquele coiso que bufa as verdades todas), o qual, cansada de amandar com máximos para cima, ultrapassei e verifiquei tratar-se de uma senhora de idade, que devia ir em pânico, mas que me provocou o pensamento machista do dia, "Olha que esta também estava boa para o calendário", e vai de raspa-te, antes que a ela lhe desse a vontade louca, e, apesar de eu não saber qual nem de quê, me envolvesse a mim.
No rádio, as notícias do trânsito soavam-me a poesia, por outras associações e aliterações que encontro no texto: problemas de circulação, e penso hahaha, o trânsito tem varizes — em Avintes, na A29, e parece-me uma piada, que seria ainda melhor se fosse com a A20.
Sentia-me eu Moisés, a atravessar as águas do Mar Vermelho, quando me surgiu esta ideia em catadupas, como um raio dos que não caíam naquele momento, mas igualmente fulminador, como são todas as que, suavemente, me atingem em cheio: eu tenho muito medo de andar de avião. Tenho medo que o avião caia comigo lá dentro. Tenho medo que leve uns minutos a cair e que eu perceba que esses são os últimos minutos da minha vida, e até tenha pena.
Quando era pequena, tinha medo de andar de elevador. O elevador do prédio onde morava estava constantemente a ficar preso entre andares, e aconteceu, uma vez ou outra, estar sozinha lá dentro e ninguém ouvir os meus gritos. E era impossível dar pontapés na porta metálica, porque o que eu tinha à frente era uma parede (entre andares). Resolvi o meu medo deixando de o ter: tantas foram as vezes que fiquei fechada dentro de elevadores, que passou a ser normal, o que, em vez de bloquear de pânico, passou a ser um desbloqueador de pânico. Tanto que uma vez me meti, com mais cinco marmanjos, com idades para termos juízo, num elevador com capacidade para três, e aquilo desceu até às molas, na cave — às escuras, sexta-feira, fim da tarde, zero pessoas no edifício que nos pudessem ouvir. Telemóveis, uma miragem de futurólogos e outros Zandingas parecidos (sarava, irmão, fica). Saímos todos vivos, parecíamos mineiros chilenos, mas um nico descompensados, a rir. E sim, foi num centro paroquial, antes que perguntem e se é que ouviram falar. Deve ter passado na televisão chilena.
Ora, para resolver este medo de andar de avião, a solução seria parecida, não fosse ela mais ou menos inviável: era entrar, vezes suficientes, em aviões que caíssem, até perder o medo de cair.
Atravessava eu o dilúvio, atravessavam-me a mim estes pensamentos, quando me lembrei que já atravessei por cima do mar uma vez, por amor. Apesar do medo. Para além do medo. Acima do medo. Não fui Moisés, nem fui Cristo, fui apenas uma simples mortal, morta pelas saudades.
E sei que hoje, apesar do medo, para além do medo, acima do medo, faria tudo outra vez. E voltaria a ser uma simples mortal.
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