15/06/2015

O amor mais pequenino

A pessoa que me apresentou os clássicos, é a mesma que hoje me fala de trivialidades não menos importantes. Por quem passaram Eça, Camilo, John Galsworthy, Isabel Allende, Agustina, Somerset Maugham, Saramago, Laura Esquível, Anaïs Nin, Namora, e mais mil, que a minha gasta memória limpou, ou não acha agora, fala-me de minudências da feminilidade, como de assuntos fulcrais para o avanço da espécie. Eu colaboro, porque o amor é uma matéria elástica, sem limites. Além disso, deixei de ter cabeça para conversas mais elevadas, naquele local, com tanta gente deixada, ali ao sol, à nossa volta. Estamos tão sós, de tão acompanhadas.

Foram alguns anos em que nos perdemos, até ficarmos órfãs uma da outra. Sem o meu pai, vi-a perdida, e perdi-a uma vez — mas não de vez. Reencontrei-a outra, mas não tinha mais nenhuma, e a orfandade é uma mágoa que não se ampara em idade nenhuma, por isso a recolhi num abraço de volta sem retorno.

Levo-lhe verniz castanho, por saber que não me permite o vermelho das minhas, o mesmo vermelho que via nas dela e me fazia desejar crescer muito depressa, só para ter umas unhas iguais. Cresci, acho eu, e comecei a pintá-las de vermelho no momento em que deixei de ver as dela com cor.
Pergunta-me que dia é hoje, mas  não quero dizer-lhe o dia do mês, para que não saiba que estamos em Junho, Junho do pai. O meu pai chegou em Junho, a meio do mês, e deixei de o ver em Junho, uns dias depois de ter feito anos.
- Esta cor chama-se café.
E pinto-lhe as unhas de castanho.
Diz-me que tenho as mãos bonitas, tão pequeninas, e ri-se, quando lhe mostro a mão aberta. Depois diz-me que eu tenho os pés tão pequeninos, e, por serem, não contesto, mas passa-me a insegurança de não saber se me vê pequenina, e o desconsolo de não poder devolver-lhe o reflexo, e vê-la ainda jovem. Isso torna-me pequenina. 
Fala-me do meu cabelo, diz-me que devia tratar dele, que está muito comprido, e que tenho as pernas escuras. Volta a rir-se toda, compara as dela com as minhas, lado a lado.
- Nem pareço sua filha.
Então, rimo-nos as duas, diante da possibilidade impossível que, ainda que possível, seria já tão irreversível.
- Sais ao teu pai.
Olho-a até lá dentro, à profundidade que já não está lá, e procuro o meu pai na lembrança dela. Corro tudo, e acho que o encontro, Era tão escuro, o meu pai. É a ele que eu saio assim, não é?
- É a ele, não vês a minha cor? Eu sou branca...

A saída é sempre um parto que me dói nascer. Tenho a impressão de um puxão na cabeça, quando a deixo, sentada e pequenina, a dizer-me adeus com a mão aberta.
Ouço-a dizer à senhora que está sentada ao lado:
- É o meu amor mais pequenino.
E nunca, como agora, percebo o alcance dessas palavras.

18 comentários:

  1. Muito,muito bonito !
    Muitos parabéns, L.P. !

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  2. Chorei a ler-te, porra! Não se faz!

    Beijo embrulhado num abraço. :)

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    1. Isso é que não! Lágrimas de Maria são continhas preciosas, devem reservar-se para eventos sérios, desejando que eles não cheguem.

      Beijo, querida, abraçadinho, também :)

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  3. Tive que partilhar! Espero que não te importes...

    Mais um beijo.

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    1. O que é que achas? :)
      Caramba, obrigada.

      Outro, enorme.

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  4. Como é possível ...após acordar domingo às 6h 30m ,ser capaz de escrever assim ?
    L.P. quando for grande - "quero ser como tu " !

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    1. Ora essa :)
      Eu já não cresço mais, calma.

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  5. Que lindo. Lindo, lindo, lindo. Como tu. Abraço apertado.

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    1. :) e como tu, Pandy :)
      Mamma bear hug, baby.

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  6. Passo por aqui quase silenciosamente só para lhe deixar um abraço apertado, daqueles em que os corações ficam perto um do outro. Só isso, Linda.

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    1. E que bem aventurada passagem, Miss Smile, e que bom abraço me fez sentir. Que é tanto.
      Um beijinho, obrigada.

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  7. Anónimo15/6/15

    Eu, nem sei como me expressar. É este embargo, depois de tantas letrinhas juntas, pegadas com tanto amor!
    Beijinho, LP,
    Mia

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    1. Então, Mia, tão bem exprimido que ficou esse embargo teu. Letrinhas juntas, pegadas com tanto amor, é uma rendinha tão preciosa!
      Beijinhos, boa noite :)

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  8. Gostei tanto! E nada mais me apraz dizer. Um abraço LP :)

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    1. E já te apraz uma coisa muito saborosa de se ler :)
      Obrigada, Gaja Maria.
      Beijinho

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  9. É difícil acrescentar um comentário decente depois de ler estas palavras tão cheias de amor.
    Fica um beijo LP.
    Parabéns :)))

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    1. Ora, parabéns de uma pessoa que escreve textos tão bons, que exigem uma articulação tão cuidadosa, é, de facto, muito gratificante :)
      Um beijo para ti, Impy :)

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