08/02/2017

há momentos em que simplesmente não fazes falta

Desde o dia em que nos tornamos mães, passamos a ser mães do Mundo inteiro.
Desde o dia em que nos tornamos filhas, passamos a ver mães no Mundo inteiro.
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Custa-me baixar os braços, desistir e seguir em frente. Na realidade, sigo transversalmente, enviesada, torta e mais perdida. Teimar em manter as unhas que tanto amo de encarnado bonito, é uma batalha que já travava sozinha, contra a indiferença, feita impaciência, de ausência feita, e então decidi, com muitas (auto)ajudas — como em tantas decisões verdadeiramente importantes da minha vida —, deixá-las apenas limpas e cuidadas, de verniz de amor transparente. E se me doeu realizar que nunca mais verei as unhas da minha mãe de amor encarnado.
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Subi a rua à procura de lugar para parar um pouco o carro, e, ao alto, vi-a deitada no asfalto, rodeada de gentes várias. Tinha chovido desalmadamente toda a manhã, mas a estrada já estava seca, e dei por isso graças não sei a quem. A miséria humana mede-se por pequenos pormenores, invisíveis lapsos de tempo, que podem fazer a diferença entre a desgraça total e um incidente sem importância. Antevi-lhe as pernas vestidas por umas calças de malha confortável, os pequenos pés calçados por botins de salto raso, e não foi difícil perceber que se tratava de uma senhora de idade. Parei e saí do carro, acerquei-me para prestar a ajuda que fosse necessária, mas apercebi-me quase imediatamente da inutilidade da minha presença: a senhora fora atropelada, já fora chamado o INEM, o condutor, aflito, estava presente, assim como duas funcionárias de uma associação de gerontologia, um rapaz tinha ido buscar um edredon para a tapar, e duas raparigas diziam palavras de conforto, como "Está tudo bem", e "Vai ficar tudo bem". A senhora queixava-se, a cabeça ainda estava pousada no asfalto, de onde escorria uma pequena quantidade de sangue; os óculos, redondos e de aros finos, haviam tombado e ficado a poucos centímetros da cara dela; o cabelo, de um ondulado muito bonito e muito branquinho, fazia um contraste absoluto com o pavimento. Parou-me o coração no instante em que a ouvi gemer,
Mamã...
Ao menos, tivesse ela dito "Ai, mãe", ou "Minha mãe do céu", e eu perceberia a evocação daquela outra mãe, numa hora de aflição dos aflitos. Mas disse, assustada e pequenina,
Mamã...
chamando por aquela que é só sua, também ela agora residente num reino longínquo e imaterial.
Reprimindo o impulso de responder àquela súplica, baixei os braços, desisti e segui em frente. Na realidade, segui transversalmente, enviesada, torta e mais perdida.