27/03/2017

O primeiro beijo de Rosinha, minha canoa

Ia eu nervosa e não segura, titubeante e periclitante, pois que me dirigia a um local onde já fui infeliz.
Sabem aquela que diz a milenar sabedoria chinesa, "Nunca voltes a um local onde foste muito feliz"? É em parecido, mas ao contrário.
Também já lá passei horas boas, boas horas. Mas aquele parque de estacionamento tira-me do sério e não me põe no risonho, simplesmente evoca-me uma vez que ali recebi uma má notícia, sentei a criança no carro, coloquei-me diante do volante e desfiz-me a mim mesma num choro irreprimível e irrepreensível. Isto de ser mulher é uma tragédia em infinitos actos, que só quem passa por elas é que coiso.
Assim, abordei o mesmo parque, tantos anos volvidos, apesar de tantas vezes que ali estive entre uma e esta outra, mas algo pode ter-me toldado a vista, o livre pensamento e as sinapses. Avistei um lugar disponível, apontei a frente de Rosinha — eu, que estaciono sempre de rabeta, à velho, como me ensinaram na escola — e trás, deu-se o ósculo bem dado, beijo mal furtado, frutificado com uma amolgadela na frente esquerda de minha canoa, riscos suaves no desgraçado que ali estava ao lado. 
Chorei. Uma mulher não é de ferro, nem seus nervos, menos ainda de aço, ainda que inoxidável. Pode chorar, que não enferruja. A mulher pode. 
(Estou fadada para os prantos naquele sítio.)
Contactada a dona da vítima daquele suave toque com tão trágicas consequências, assinada a declaração amigável (ficámos legalmente amigas), dizia ela, feliz proprietária de um carro riscado, é certo, mas também de um mega-telemóvel, ensombrando chico-smart que se me falece todos os dias um pouco nas mãos, à custa das sevícias a que o sujeito, que Cá dentro tenho "o talho"; Eu estou sempre no talho; Tenho câmaras no talho, e vejo tudo o que lá se passa por aqui. (E apontava para a máquina poderosa, que me encolhia a mim e a chico, não bastando a nossa minha humilhação pelo estrago operado nas viaturas, ainda de maquilhagem denunciadora do desgosto.) O pináculo atingiu-se no momento em que me perguntou se podia tirar uma fotografia à declaração assinada, e me vi no achincalho de ter que dizer assim: Eu tiro, mas não vai perceber-se nada, esta câmara está aos tremeliques, o telemóvel anda a querer avariar, e vai ela e responde o seguinte: Deixe estar, que eu digitalizo com o telemóvel. Pois, não percebi por que é que queria que eu fotografasse uma cena que ela podia digitalizar. (E, se calhar, amandar para o talho, também.)
Estou capaz de me fazer vegetariana, vegan, herbívora, ruminante, fundamentalista da erva.
Uma pessoa farta-se de ser assim.

4 comentários:

  1. Anónimo27/3/17

    Eu sei que devia estar solidária com a sua dor, mas tive que me rir! E a culpa é sua, que escreve com tanta graça :)
    AL

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    1. Tudo bem, tudo bem... no fundo, eu sei que sou uma vítima de mim mesma :)
      Obrigada, AL :)

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  2. Ficaram legalmente amigas, alguma coisa de positivo adveio da situação. Pronto desculpa, toma lá um abraço :)

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    1. Estás desculpada, tu és a que ri dos que caem, já me habituei :P

      Olha que bom, dá cá :)

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