22/03/2017

eu acho que estive lá

estava uma mulher ao meu lado, segura pelo que foi a cintura — não presa nem amarrada — ao cadeirão onde estava sentada, para que não se levantasse dali e saísse a correr, como se isso fosse possível, dada a fragilidade das pernas e de toda ela. Repuxava as calças de malha para cima, expunha as meias de lã grossa e a magreza da velhice, e murmurava, os olhos pregados nos meus, 
ai meu pai, ai meu pai
e isto foi no dia a seguir ao Dia do Pai, ainda eu não tinha recuperado da falta do meu nesse e nos outros dias todos. 
Antónia, Antónia
e depois dirigiu ainda mais o olhar perdido para o meu, acertando-me em cheio,
ó Ana,
e eu, que sou parva, cantei-lhe baixinho
ó Ana, ó Ana, senhora minha mãe vou já.
no outro extremo um homem lia um livro sobre OVNIs, já há semanas que o vejo agarrado àquilo, suspeito que não passa da mesma página, que pode ser a única que está impressa em todo o livro, o homem estuda com afinco enquanto me faz sentir a mim um extraterrestre.
continuo a arranjar as mãos tão amadas, que me ficam lindas nas minhas, intuo que no tempo que dura aquele bocado a minha mãe é a pessoa mais lúcida daquele espaço todo, embora me repita
és tão linda,
e, quando esse tempo acaba, verifico que as minhas mãos envelheceram enquanto ele durou, mas deixei-lhe as dela pequenas e frescas como as de uma criança. Primaveris.