07/08/2016

As coisas que eu vou desencantar ao baú... # 10


Diário de bordo
(25.08.2009)

Querido diário:


Caiu um penedo em cima de um número indeterminado de pessoas. São 4 da tarde, e a rocha despencou-se ao meio-dia. Tiraram de lá um homem morto e uma senhora foi para o hospital. O rádio diz que a praia voltou à normalidade, e a mim parece-me que está tudo do avesso. A normalidade do rádio significa que os banhistas estão no mar, a banhar-se, e ao sol, a corar. Ninguém cora de vergonha, acontece que é um dia diferente, caíram umas pedras lá de cima, uma era enorme, morreu um homem, está uma mulher muito mal, há máquinas de obras no areal, muito movimento de bombeiros, vêm os políticos, sabe-se que há mais pessoas lá debaixo, mas o mar chama, o bronzeado bonito apela, “isto não me vai estragar as férias”, diz quem viu, diz quem podia ter lá ficado também, diz quem chorou quatro horas antes.

De repente, parece que muita gente podia lá ter estado, e só não estava porque “se deu o milagre”. Como quando cai um avião. Eu própria equaciono assim a coisa: tive uma casa apalavrada na Oura, a praia mais próxima dessa casa seria a Maria Luísa, será que… também eu…? Não. Eu não gosto da Maria Luísa. Não gosto de praias pequenas, metidas entre três paredes e o mar, claustrofóbicas, não gosto de rochedos altos, montanhas de asfixia num ambiente que se quer tudo menos apertado. Iria para a praia de outros anos, mais uns quilómetros de carro, mais ar, mais areia, mais espaço. Suporto cada vez com mais dificuldade esta quantidade de tias castanhas, que estão a ficar piladas, não concebo como é possível estarem daquela cor sem recurso a instituto, a milhares de horas de sol, a exageros de óleos. Tenho medo de ficar assim, um dia. Já cheguei à cor que quase não gosto, e escondo-me à sombra todo o dia. O mar é tão quente que nem dá para nadar, mas, ao menos ondula o cabelo. Faz-me falta o gelo da Costa, a hipotermia nas pontas dos dedos, as sovas do mar cavado, o sangue a correr nas veias.

Os homens ganharam mamas, estão quase iguais às mulheres, e elas, para se vingarem, ganharam barriga, e ficaram iguais a eles. Não se distingue o que é deselegância e o que são gravidezes no primeiro trimestre. Está toda a gente a escorrer celulite, varizes e mazelas várias. Os carecas resolveram rapar o cabelo que lhes restava, passam creme nas costas obesas das tatuadas, ao longe todos parecem muito sujos, mas é tudo tatuagem! Toda a gente tem pêlos a mais, ou amolgadelas algures, ou então um penteado indecifrável. Os fatos de banho são inomináveis. Devia existir uma taxa à porta da praia. Tatuado, peludo, calções ridículos, taxa. Para elas também. Pena de prisão, não remível, multa.

Eu passo a ferro. Cuido dos filhos. Cuido da gata. Take care, naturally.

Vou para a praia de carro. Enjoo de carro. Sou a única adulta que conheço que enjoa de carro. O mar está demasiado quente.

Mãe, não é verdade que o G. fica gordo se continuar a comer desta maneira?

Mãe, dá-me mas é a bola de berlim!

A gata está nas suas sete quintas. Ninguém me convence que os gatos não conhecem dono. Esta está-se borrifando para o facto de ter mudado de casa. Está connosco, está bem. A casa tem dois andares. Ela anda escada acima e escada abaixo atrás de mim. Deita-se na tábua de passar a ferro a fazer-me companhia, e a ocupar-me parte da tábua, o que me impede de colocar o ferro no descanso. Come a relva do jardim, vomita verde, mas não desiste daquilo. Cheira a piscina e prova a água.

O rapaz inventou uma dor no joelho. Coxeia como o Dr. House só por saber que eu gosto dele. Continua em pleno complexo de Édipo. Para o torturar, digo-lhe, enquanto o cubro de beijos: "Não chegas aos calcanhares do meu Housinho". Não se safou de ir ao médico, e de fazer um tratamento com gelo e pomadas. O pai fez, eu nunca acreditei naquela dor. Dói-me tanto uma costela que não tenho tempo para complexos com nomes de deuses gregos. Devo-a ter partido, e são dores tão lancinantes quando espirro ou tusso que já só rezo para não me constipar. Quase não posso rir-me, o que não é fácil por estes lados, com os figurinos da praia e os nomes dos candidatos a autarcas. Dá a sensação que, para alguém se candidatar a estes municípios, tem que ter um nome estrambólico — Abúndio Martins, Seruca Emídio, Noélia Ribeiro, Jovita Ladeira, Joaquim Vairinhos, Jamila Madeira...

Um destes dias volto. Agora vou ver o Dr. House.

(tenho um nome demasiado vulgar)

6 comentários:

  1. Diz-me: tens mesmo um "querido diário", daqueles à moda antiga (com cadeado e tudo) ou isto é um excerto de um blog mais antigo?

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    1. Tive muitos, muitos, agora já não.
      E sim, o "baú" são sempre textos que vou buscar aos velhos blogs :)

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    2. Tinha tanta coisa bonita para ir "repescar". Mas depois podiam reconhecer-me de outras lides. E depois perseguiam-me e agrediam-me (agian). Mais vale estar quieta. XD

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    3. Só "repesco" de blogs fechados, ou que se mantêm privados :)

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  2. parece-me que pouco mudou no geral desde 2009, ou é impressão minha? :)

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