29/08/2016

Eu sou aquela pessoa que nunca, em circunstância alguma, deves levar a passear à rua # 46

Vamos supor que a pessoa entendeu necessário adquirir um creme para os olhos, como diriam os franceses. Na realidade, trata-se de um creme para as pálpebras, ou venha de lá a primeira doida que enfie o dito nos olhos. 
Entra na Séphora* e é logo atendida. Diz ao que vai, que quer um creme para as pálpebras, que já usa há bastante, refere a marca, mas não se lembra do modelo. Isto é uma treta, a memória dispersar-se precisamente no que interessa. Mas, caneco, já fui mais nova e, se assim não fosse, também não estava ali para comprar um creme para a porra das pálpebras. O rapaz que me atende está fabulosamente maquilhado: usa uma base compacta dois números acima do seu tom de pele, o que o faz parecer um boneco de cera cor de tijolo. As sobrancelhas estão depiladas a linha, e pintadas de preto. As pestanas têm o rímel meticulosamente bem colocado. O eyeliner há-de ter sido posto a compasso com tira-linhas.
Sinto-me uma parola. Uma doce e encantadora parola, mas, ainda assim, uma parola. E isso é extremamente confortável, uma vez que se prepara a cena do costume: ele vai tentar impingir-me cento e tal euros de cremes para as minhas pálpebras que eu acho envelhecidas.
Aponta-me dois, um sérum e um hidra, ou lá o que é. Os dois juntos, prometem maravilhas e malabarismos oculo-cutâneos. No entanto, sei de mim o suficiente para adivinhar que, caso os compre, me encherei de rugas de contrariedade e autodesilusão. Há que equacionar os prós. O homem pede-me a mão — que é como quem diz — e ensina-me a colocar o sérum, o tal que vai reverter um processo que é natural. Começa a desenhar oitos ou infinitos, nas costas da minha mão estendida, para me indicar como é que o hei-de aplicar. Surge-me a dúvida se as argolas do infinito devem assentar em cada um dos meus olhos, e o ponto de intersecção na cana do nariz.
Sinto-me uma estúpida, por não perceber a utilidade de passar uma gosma tão cara no alto da cana, mas não pergunto nada. A verdade é que não tenciono comprar aquilo, e é-me absolutamente indiferente se é suposto desenhar oitos ou oitentas ou infinitos e mais além com a bisnaguinha milagreira.
Agarro um frasco de outro creme, que diz "contour des yeux" e leio a embalagem, onde consta "anti rides", "anti cernes", "anti poches", no meu mais apurado francês. E digo: "Rugas, olheiras e papos, este tira tudo". Armada em estrangeira ou poliglota. 
Toca-me o telemóvel e nasce-me ali, de partenogénese, a secreta esperança de que seja alguém a berrar por mim, a bradar por um fogo que só eu possa apagar. Assim não sendo, digo: "Estou na Séphora* [séfura]". Sei que a forma como pronunciei o nome da loja vai deixar o homem todo eriçado de nervos, mas cheguei àquele ponto desesperado em que quero que ele não goste de mim e me ponha a correr dali para fora. 
Mas é claro que isso, só nos filmes. Já na caixa, pergunta-me: 
- Tem cartão Séphora*? [sêfôrrá]
Já vou longe quando percebo que ele meteu no saco da compra do bendito creme a oferta de um par de óculos de sol. Lunettes de soleil. 


*Ninguém me paga para isto, mas, em compensação, também ninguém me paga para me calar.

2 comentários:

  1. Também ganhei uns.
    Incha!

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    1. Eu fico um bocado ridícula com os meus, mas fazem uma rica bandolete e protegem-me dos UV todos.

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