17/04/2015

Bojador

Temos contas a ajustar, ele e eu, um destes dias. Não sei se serão ajustadas, ou justas, alguma vez, mas terão que ser feitas, sob penas, duras penas, de este meu deve e haver ficar sempre para sempre num défice que me dói a mim, muito mais do que a ele, que não precisa de mim para nada, mais uma gota no oceano, e qual deles não pode dispensar uma das suas lágrimas? Quem quer passar além do Bojador Tem que passar além da dor.

Fui-lhe apresentada ainda pequena, teria sete anos, mas já me falavam dele antes disso. Descreveram-mo como justo e bom, outro pai, o que, à escala da idade, me trouxe a imagem, por imaginação infantil, de colo, sorrisos, histórias - ah, e também aqueles olhos t'amo-t'amo que o meu pai tinha - para uma filha imperfeita, que ainda não sabe amar como as pessoas crescidas preferem ser, mas que sabe muito bem ser amada sem porquê, nem ses nenhuns, nem há cá talvez. Mas, com o tempo, apesar de não ter crescido nem um centímetro desde que fomos apresentados, surgiu-me aos olhos uma figura silenciosa, para a qual eu falava sem que alguma vez me respondesse, a quem eu confessava os meus piores e prometia os meus melhores, e que me cobrava uma linearidade que eu não sabia traçar, que nem o meu pai, tão amado, alguma vez me pôs ou impôs. 
Um dia, só pode ter sido por isso, investido de ciúmes pelo amor desmedido que tínhamos, pôs-me à prova e deu-me a provação maior, dando-me a provar a possibilidade de o perder, pedra de toque que, mal toca o coração, o fere, mas ainda desmede mais o amor. Nos cuidados intensivos e, depois, no quarto dele, no hospital onde me aprendi a viver por meses depois da escola, fazendo toucas de enfermeira em papel, pondo-as na cabeça e dando injecções às bonecas todas, mas, e sobretudo, segurando-o à vida, segurando-lhe as mãos, pousadas na cama mais alta que eu, a cheirar a lençóis, pedindo-lhe calada Não me deixe, não se deixe morrer, não me morra, não me deixe morrer - e ficando calada - nem sei como aguentava - Agora cala-te que o pai precisa de descansar, para as bonecas a mesma ordem, Agora calem-se que o pai precisa de descansar. Tinha tanto medo. Foi aos sete anos que percebi que o amor quantificável aumenta, se for confrontado com a iminência da perda, e que o meu pelo meu pai se desmesurou em tamanho e volume e altura e lonjura e profundidade e densidade. 
Enquanto isso, ele cobrava-me os pedidos, nunca satisfeito com a quantidade de horas de sono que eu me roubava para o atender, naquela ânsia de mim e das minhas súplicas, que eu nunca vou perceber se ele achava indignas ou inúteis, pois nem água-vai naquele meu dialólogo, achava eu que diálogo, a falar sozinha desde o início das nossas minhas conversas. Devolveu-me o pai mesmo à justa de mo tirar, deveria eu ter-lhe ficado eternamente grata, não fora ter perdido as forças, a crença e a infância toda desde o nascimento.

Dez anos depois, julguei tê-lo encontrado em Descartes, pareceu-me tão óbvia a explicação da existência dele, uma regra tão matemática, se eu me tivesse autocriado, teria posto em mim todos os elementos da virtude, mas sou tão imperfeito, que só posso ter sido criado por um ser perfeito e superior, isto era tão lógico que me entrou pela cabeça adentro, mas nunca me ocupou o coração. Pode ter sido porque já não tivesse sete anos e nem nunca os tenha tido. 

Outros dez passaram, enchi-me de vida por dentro e ele fez-me a mais cruel troca-por-troca de que se lembrou: Dou-te uma criança, dás-me o teu pai. O amor que lhe tens faz falta à criança que vem. E eu considero-te incapaz de amar tanto duas pessoas ao mesmo tempo. A seguir àquela, vieram outras, e eu, naquele estado de graça, ficava quase mística, que engraçado. Fazia trocas, pedidos, promessas, chantagem, ameaças e negócios com ele. Tinha tanto medo. Mas estava a operar um milagre, sentia-me à altura dele, até um bocadinho de nada superior. Homem, que sabia ele do que significa esperar por um filho, cujos pés nos empurram o estômago, haverá lá milagre mais milagroso do que uns pezinhos a dar toques ao nosso estômago? Soberba. Ainda assim, sabia-me dependente da vontade dele, umas vezes soberana, outras cruel, outras injusta, outras de Pai. Pedia-lhe protecção e saúde para a minha criança. Perdi uma e achei-me roubada por ele. Talvez não lhe tivesse falado com convicção e fervor suficientes. Voltei, então, aos nossos meus dialólogos. Uma vez, pedi-lhe: Preciso de confirmar uma coisa contigo e, por isso, peço-te agora que me dês uma criança do mesmo sexo da que me levaste. E nasceu-me um rapaz.
É só por isso que eu sei que, um dia, perdi um rapaz.
Tenho uma estranha forma de não acreditar em Deus, eu.

12 comentários:

  1. Cara Linda,
    Que fervorosa oração.
    Beijo,
    Outro Ente.

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    1. Caro Outro Ente,
      Creio que Lhe peço, muitas vezes, que me leve a crer.
      Beijo,
      Linda Porca.

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  2. Quando escreves assim, os meus braços arrepiam-se. Abraço, LP, e um grande beijinho. Este texto está fenomenal.

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    1. Obrigada, minha querida. Tenho que passar a ser mais cuidadosa. Ou mandar-te um casaquinho :)
      Bear kiss :*

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  3. Beautiful, é o que me apraz dizer.

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  4. L.P.,

    Li e reli !
    Muito bonito o teu texto !
    Muitos parabéns e bom fim de semana !
    Beijo,
    José

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    1. Obrigada 3 vezes!
      Bom fim-de-semana.
      Beijo.

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  5. Li há pouco este texto e agora que o leio novamente sinto exactamente o mesmo: um arrepio e um aperto no coração.
    Gosto da tua estranha forma de não acreditar em Deus. O texto está fenomenal.:)

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    1. Ele deve andar por aí, tenho que procurar melhor.
      Obrigada, Imprópria :)

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  6. Há que ler, deixar que se entranhe, depois voltar, e reler. E perceber que se está perante algo de uma profundidade tal, que -- nunca uma leitura será suficiente, e que qualquer palavra adicional que se possa dizer é redundante, intrusiva, até.
    Dolorosamente brilhante.

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    1. Xilre, um comentário dessa dimensão, provindo de quem vem, deixa-me a mim, sempre tão prolixa, sem palavras.
      Só a minha gratidão.
      Nunca intrusivo. É absolutamente impossível isso algum dia acontecer.

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