É nesta altura do ano, e, em particular, nos centros comerciais, que o inferno se materializa, cimenta, ergue, qual Adamastor.
Fileiras de gente, igualmente infernais, comandadas agora pela regra da fila única mais altifalante, inventada pela Primark e adoptada pela FNAC, caixa 2, por favor!, caixa 5 por favor!, e assim segue a carneirada. yes sir, mééé, eu só quero sair daqui.
Vem uma mãe, pequena, despenteada, desgastada, magra, daquele magro de tanta falha, e ralha para o filho, uns sete anos, loiro, nariz a gritar "opera-me já aos adenóides", magro das mesmas falhas, Não me chateies!, ele choraminga, Mas eu não te estou a chatear..., e ela obriga-o a ficar ali ao pé, quieto — tolhido de vergonha, perante uma plateia indiferente.
Uns metros adiante, está um pai, não sei se feliz, mas vejo que contente, que traz um rapaz da mesma idade do da mulher magra, cabelo escuro, mas que anda à solta pela loja, ora mexendo num expositor, ora observando outro, enquanto o pai, que julgo contente, desata a cantar "Let it snow". O miúdo olha para ele, continua a saltitar entre corredores de revistas e gomas, e o homem repete "let it snow", e dá um discreto pezinho de dança de cada vez que canta. O filho esconde-se mais um pouco, a cada "let it snow" do pai, cada vez mais sonoros — tolhido de indiferença, perante uma plateia embaraçada.
O rapaz loiro está ali, ao pé da mãe, como ordenado, de olhos cravados no rapaz moreno, que ora se esconde, ora reaparece.
Com toda a probabilidade, nunca se irão conhecer.
Por algum motivo, lembrei-me de uma série que deu, há muitos anos, Homem rico, homem pobre. Dois irmãos, um rico e um pobre.
Por algum motivo, pus-me a pensar: se tivesse que escolher, será que escolhia ser o filho da mãe magra e desgastada, ou o filho do pai contente e despropositado?
Por algum motivo, decidi-me pela mãe.
Isso é solidariedade, de quem é mãe também. Eu que em muitos dias sou a mãe magra e desgastada, prefiro-me naqueles em que sou o pai divertido e despropositado.
ResponderEliminarPois é :)
EliminarMas continuo a ser mais solidária com a desgastada do que com o excitado. Mesmo pondo-me no papel de filho. Não há nada mais irritante do que um pai porreiro e sem noção.
Todos temos dias em que somos uns e em que somos outros. Eu, ultimamente, tenho sido mais a mãe magra desgastada.
ResponderEliminarÉ muito verdade. Mas é tão mais fácil ser-se alegre e fixe e tudo, quando não falta nada. A paciência para os filhos falha-nos em último lugar, quando tudo o resto já entrou em decréscimo.
EliminarPior cenário ainda - serem irmãos...filhos da mãe magra e desgastada e do pai contente e despropositado.
ResponderEliminarResta apenas uivar .
Talvez se fizessem companhia, sendo irmãos...
EliminarEscolhia o pai, decididamente. Quanto a ter...não sei, já vi gente feliz sem quase nada.
ResponderEliminar~CC~
Não duvido. Mas, naquele caso, a falha parecia vir de todas as direcções, não só financeira.
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