03/09/2017

super mercado

Passaram por mim invisíveis, e ainda agora não sei como é que os vi, se mais ninguém, mas sei que os vi. Davam um ao outro o braço, o mesmo cuja mão arrastava um cesto de rodinhas, ainda vazio, e, com a outra, empurravam um carrinho de bebé, numa cadência de comboio cuja locomotiva, perdida e sem carvão, se encontra algures ali pelo meio, mas não certamente à frente. Semi-deitado, um rapazinho de cerca de dois anos dormia. Só os vi por estarmos num supermercado, eles serem tão idosos e a criança dormir tão profundamente — apesar da luz, apesar do som, apesar das hesitações no percurso, apesar de já não ter idade para dormir assim em condições assim. Depois reencontrei-os na caixa, o meu carro cheio de primeiras necessidades para um batalhão que as consumirá em poucos dias, o cesto deles leve, apesar do peso. E foi quando reparei que a ela lhe saía a aba de uma fralda pelo cós das calças legging pretas, tão velhas quanto ela, poídas e furadas numa das pernas. Ele tinha vestida uma camisa de xadrez sobre as calças de ganga, cuja fralda podia bem esconder igualmente essa outra fralda. A criança continuava a dormir daquela maneira desinocente que nunca deveria ser a do sono de um anjo. Não olhei para o conteúdo do cesto deles por pudor e cobardia, mas, essencialmente, porque tinha o coração despedaçado naquele momento.

6 comentários:

  1. Nunca devíamos envelhecer assim...
    Diabo de corpo que desaba. Diabo de vida que entorta.

    Beijos, Lindinha.

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    1. Não, Maria, não devíamos. Nem nenhuma criança de fraldas devia ficar aos cuidados de alguém que tem que mudar a sua própria. A miséria começa no berço e arrasta-se, corrosiva.

      Beijos

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  2. Dói tanto tomar conhecimento de vidas tão tristes....

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    1. Dói mesmo, Gaja Maria. Depois segue a vida e, por mais que fiquemos a matutar naquilo que vamos vendo, a impotência acaba por nos toldar a memória...

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  3. Tenta antes imaginar que foi um dia sem exemplo. Que naquele dia o petiz fez tamanha birra q os avós cederam a ficar com ele umas horas.
    Tenho dias em que n tenho capacidadr de me angustiar mais com a "miséria" humana, seja ela de q espécie for.

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    1. Às vezes até faço raciocínios mais esdrúxulos, piorando a hipotética situação, para me torturar um bocadinho mais. Sou uma doente.
      Poupa-te, menina, the best is yet to come 👶😘

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