14/07/2016

Minha rica tia

Pronto, agora já posso falar de outras coisas.
Venho de um funeral. Morreu-nos uma tia, que caminhava, a passos largos (apoiados numa bengala), para os cem anos. Já estou um bocadinho habituada a perder tios por afinidade, de cada vez que tenho um trabalho maior. Até já andava a estranhar tanta trabuca e nada de exéquias.
Rica, podres, sem herdeiros que não sejam(os) os sobrinhos, e um ou outro irmão sobrevivo, dos sete que eram. 
Eu não me dou lá muito bem com velórios. Mas ontem fui lá ao dela. Adivinhei que não teria muita gente, e fui para encher a sala. E fazer de corpo presente, passe a expressão.
Na capela, já estavam sentadas várias primas (afins); quis conversar com elas, mas fiquei sem ter onde pôr a mala, a não ser no chão. Então, lamentei:
- Dizem que o dinheiro se vai embora se pusermos a mala no chão.
- Não arrisques, filha, agora não. — Respondeu-me uma doida que tem o mesmo nome próprio que eu, e pode ser por isso.
Algumas flores. Não muitas, porque se tratou de uma pessoa que não deixou quem a chorasse, e parece que as flores e as lágrimas têm uma directa correlação. Nenhuma criança adoptada, pegada pela mão, aninhada no colo, mesmo não tendo saído da barriga dela. Conversam os sobrinhos menos indirectos do que eu, como é que serão feitas as contas ao pagamento das flores. Uma delas explica que a agência se fez pagar por um pacote completo, pelo que o serviço fúnebre as inclui. No fundo, o de cujus paga as suas próprias flores. Ironia do destino, se é que se pode falar numa coisa ou noutra, nesta hora. Quem podia, pode — pensei eu assim. 
Um pouco por todo o lado, suspiros — Ai, minha rica tia.
Anteontem, nem talvez uma hora sobre a morte, ligou-me a que só bebe sumos de laranja, a rir que nem uma perdida, porque acha que é desta que vai ficar rica. 
Hoje, na missa de corpo presente, só ela e mais duas comungaram. Também sabe a missa de trás para a frente, e já está naquela idade em que fala mais alto do que toda a gente, para que se perceba que sabe a lição toda de cor.
À saída, fui comprar um geladinho azul, para aguentar o enterro. Pergunta-me a doida que é minha homónima se estou com fominha.
- Estou. Não papei hóstia nenhuma, fiquei nesta fraqueza.



6 comentários:

  1. Essas tias velhinhas deixam sempre a fortuna ao padre, devias ter dito isso às sobrinhas "da hóstia".

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    1. Esta talvez não, Be.
      Mas quem se riu daquela maneira, ser a mesma pessoa que vai solenemente comungar é que me dá cá uma fraqueza...

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  2. Essa tia tinha condições financeiras para adoptar?
    É a única coisa que me impediria de ter um destino diferente do dela...
    Mas na geração dela se calhar isso era muito avançado. Pelo menos sem um homem por perto (não o mencionas). De resto, se calhar cuidou de alguns desses sobrinhos, decerto mudou as fraldas a alguns bebés..

    Ai o que me foi dar para pensar... Na vida. Não na morte. Parece-me bem :D

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    1. Tinha, se tinha...
      E, por acaso, falava em adoptar num sentido mais lato: criar uma instituição, insuflar uma com tanto do que tinha e não precisava.
      Tinha marido, que morreu há dois anos. E nunca mudou uma fralda, nunca ajudou a criar nenhum dos sobrinhos.

      Também prefiro pensar na vida :)

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  3. Coitada da Tia !
    Há Tias e Tias .
    Gelado azul ????
    Sabor a pintinho da costa ...

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    1. De sabor a pastilha elástica. Tão bom!
      Olha, aguentei o enterro estoicamente!

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