23/05/2017

Desamor

Ouço o choro daquele bebé e ainda me distraio a interpretá-lo. É vício, é hábito, é treino que nunca perdi. Está aborrecido, cansado, com frio. O ar condicionado está ligado, mas arrefece as extremidades de um menino — presumo que é um menino pela cor com que está vestido — de pouco mais de um mês. A mãe, muito jovem, muito linda, gordinha e loura, abana-o no colo à medida que ele solta gritinhos, e ele solta gritinhos à medida que ela o abana, numa dança que parece não ter outro fim que não seja o do aborrecimento mútuo. Ao lado, o pai, ausente, e o filho mais velho de ambos, distante. Os cerca de oito anos e a sanduiche que tem na mão não lhe permitem mais senão manter-se fora daquela sala de espera, que até eu, que já multipliquei por tantos os meus oito anos.
A mãe tenta o leite, tenta a chucha, tenta virar o colo impaciente, mas o choro não cessa. Abstenho-me, obviamente, de lançar mão de ajuda. Quem sou eu senão alguém que criou bebés há demasiado tempo para saber de que choram eles?; e por pudor; e porque as crianças precisam de chorar; e porque as mães também. Assisto, assim, impávida e pouco serena, ao pedido da mãe ao indiferente pai, que lhe passe um toalhete. Ele entrega-lhe uma embalagem inteira, ela já não dispõe de mais mãos livres para retirar apenas uma, desespera-se de solidão, chama-lhe parvo e ele explode numa raiva muda entre dentes, "Chata, porra! Tu és uma chata, caneco". 
Saem os quatro quando são chamados para a consulta de um deles, passa diante de mim o que foi um dia um casal, e pergunto-me há quanto tempo é que aquelas duas pessoas se amaram, a ponto de porem outras duas no Mundo.


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