Todas as noites, antes mesmo de me deitar, percorro a casa e vou dar beijos de boa noite a todos os meus quatro. Longe vai o tempo em que aconchegava lençóis, contava uma história — eu às meninas, o pai ao rapaz, alternadamente —, voltava a entalar os lençóis debaixo dos colchões, dava beijinhos, uma última atenção, "Dás-me mais um beijinho?"; "Cheiras tão bem..."; "Amanhã levas-me à escola?"; "Tens frio?", apagava a luz (deixava uma de presença, nessa época) e saía, se não cem por cento tranquila, por não ser da minha natureza, pelo menos apaziguada, num misto de cansaço e amor, que é aquela combinação implosiva que nos dá alento enquanto os filhos são pequenos.
Uma vez, estava à porta do quarto das três, não havia nada que me indicasse que havia qualquer coisa de anormal, estavam todas deitadas há umas horas, apenas a penumbra azul da fraca luz, e recordo-me de me sussurrar, Vai lá. E aconteceu — coincidência ou não — uma delas estar com febre.
Lembro-me de a minha mãe nos beijar na testa com alguma frequência, de sentir o mimo mas também a demora, e, uma vez ou outra, após esse beijo, constatar: "Tu estás com febre".
(Às mães incorpora-se-lhes um termómetro nos lábios quando os filhos nascem, faz parte do kit.)
Os beijos de boa noite que dou aos meus são sempre no cabelo. Porque têm cheiros diferenciados, que eu distinguiria entre si e entre milhares, porque (ainda) me cheira a crianças, porque não peço em troca, basta-me dar, e o cabelo é o local ideal para a oferenda sem retribuição.
Dei-lhe o beijo no cabelo, disse Dorme bem, meu amor, e fiquei parada na hesitação.
Vai lá.
Usei o termómetro da boca de mãe, "Tu estás com febre".
Que não sei, que talvez, que pode ser que não. Usa o outro, então.
38,1º.
E repetimos gestos e palavras, como um ensinamento, que um dia eles repetirão também. Terão as crianças que são hoje, ou foram há pouco.
ResponderEliminarBeijo
Sou separado da mãe do meu filho. Felizmente ele divide-me com ela e tenho a sorte de poder estar com ele todos os dias. Não imagino como seria se fosse de outra forma. Preciso da presença dele, do cheiro, de me sentir criança com a minha criança. Queria tanto que nao crescêssemos, mas pelo menos tenho a sorte de não sendo possível devo fazermos juntos.
ResponderEliminarTão bonito, esse teu comentário. Olha, Paper Cut, quando estamos com eles, fazemos esse (mesmo que breve) regresso, e é nessa medida, ou, pelo menos, nesses momentos, que não crescemos, efectivamente :)
EliminarÉ tão verdade. O meu Kukas tem uma particularidade que eu adoro em especial. Desde sempre que lhe conto uma história ao deitar, mas ele nunca gostou que lhe lesse histórias já escritas. Ele dá-me uma lista de personagens e cenários (um cão amarelo, um jardim com um escorrega, o Hulk, um foguetão vermelho, etc) e eu tenho de contruir uma história onde tudo se conjugue.
EliminarAproveita-o bem agora, diz-te quem vai à frente (mas sem mágoas, nem invejas, nem tom de ameaça :)).
EliminarEu contava de várias formas. Inventei uma história, “A menina que só gostava de azul”, também li e pentali todas as do José Eduardo Agualusa, as fábulas, todos os livros novos que apareciam em casa, sei lá, foram muitas horas e muito bem passadas.
Seja qual for a opção, é boa. E é nossa, para sempre.
Gosto de ler esta Blue mais 'melancólica', eu, que nem sei se algum dia terei filhos.
ResponderEliminarÉ o meu registo preferido, Diogo. Nem eu própria tomo a “outra” muito a sério, embora me divirta às vezes.
EliminarOs filhos vêm quando é a altura certa. Ou então, não, e ficam só à espreita. (Ainda vou escrever sobre essa minha sensação dos filhos à espreita; acho que ainda deixei 3 ou 4 que bem gostaria que tivessem vindo.)