03/09/2018

Entre as 10:00 e as 11:00

Todos os bairros e recantos do Mundo têm uma figura assim: no meu, é o Zé Maria, homem para os seus sessenta anos, idade mental de talvez uns seis. 
O Zé Maria tem o sorriso infantil sempre à mão na cara redonda, mas os olhos, azuis, são escuros como o céu brilhante das noites de Verão, enrugados e tristes, e é essa desproporção que o torna encantador, por parecer simultaneamente uma criança infeliz e um adulto sorridente. 
- Estás tão bonita! — Disse-me ele hoje, na minha hora feliz do dia, que é quando irradio, e que vai das dez às onze da manhã. 
Estaquei a marcha e desfiz-me num sorriso certamente mais pobre do que o dele, estremunhada de surpresa boa, encantada não tanto pelo conteúdo do comentário, mas pela espontaneidade que só os seis anos dele permitem. E agradeci a simpatia.
- Olha, tens linhas para me dar?
(O Zé Maria passa os dias no centro de dia, e faz pequenas peças de croché.)
- Aqui, não tenho, Zé Maria, mas trago-te de casa, queres?
E ele feliz.
- Olha, és solteira?
- Não, não sou.
- Ah, é que, se fosses, casava-me contigo.
E todo ele lógica feliz.
[Acho que não casavas, Zé Maria. Eu só tenho a tua idade entre as dez e as onze da manhã. Depois dessa hora, a vida leva-me para a idade adulta, e nessa clausura não havias tu de querer viver.]

2 comentários:

  1. É a tua extraordinária escrita que ainda me faz acreditar que vale a pena passar pela "blogolândia".
    Extraordinária escrita a tua.

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    Respostas
    1. Obrigada, Gaffe :)
      (Mas nem tanto, nem tanto...)
      Saudades de ti e da tua escrita, essa sim, extraordinária!

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