20/10/2014

O peão que se agiganta na passadeira

No sábado aconteceu-me assistir a uma - felizmente - raríssima cena, em que uma senhora de idade ia sendo atropelada na passadeira. Era dia claro, duas e meia da tarde, a senhora estava a meio da passadeira, vestida de cores vivas (rosa shock e amarelo, só lhe faltava levar colete reflector e luzinhas de Natal), a passadeira faz o atravessamento de três faixas de acesso a uma rotunda e estavam dois carros parados - um em cada faixa - para a deixar passar, quando, da única faixa livre, surge uma gaja que, não obstante estarem dois carros parados, eu repito, não lhe ocorreu que, não existindo nenhum semáforo a condicionar o trânsito, eventualmente aquelas riscas que estão desenhadas no chão não são uma zebra, e que por cima delas podia estar uma pessoa. Passou pela frente da senhora, que deu um grito e pena foi que não fosse a tempo de lhe espetar com a bengala no vidro da frente. Porque, como é óbvio, não estava ali nenhum polícia e, se estivesse, estaria a guardar um banco, um telemóvel ou um cigarro. Naturalmente, a vaca não parou (a pressa é sempre justificável, se não for para tirar a mãe da forca, há-de ser para cagar), tendo deixado a assistência à senhora por conta dos outros automobilistas.

Ora, isto deu-me que pensar no quão injusta é a vida, a começar porque a porra do Euromilhões ainda não me atingiu em cheio, e a acabar na forma como são distribuídos os acasos da vida relativamente ao comportamento dos peões versus automobilistas. Porque eu às vezes também sou peão e às vezes também conduzo, e, se calhar por isso, compreendo os dois lados de coise.

Eu sou aquele peão que atravessa. Reconheço que forço a que o carro abrande e ou pare, que nunca acelero o passo se vejo que o sacana não só não vai parar como também até acelera - sim, corro riscos, mas, naquela hora, dou a minha vida para obrigar um FDP a puxar as rédeas ao cavalinho, e vá lá ser excitado para casa -, que até acelero o passo se fizeram a gentileza de me dar passagem só a mim, numa passadeira sem semáforo. Tudo isso.

Já enquanto condutora, o que tenho a dizer é que há peões a que só apetece dar uma trancada e chutá-los para o passeio de gatas. Mas que raio da merda é que têm na cabeça quando: 

1) Subitamente, mal iniciam o atravessamento, abrandam o passo a expoentes máximos? Estão a dançar moonwalk? Foram acometidos de paralisia? Ralenti? Hemorróidas? Juro que estou à espera do dia em que um destes saque da toalha e monte o pique-nique na passadeira.

2) Atravessam de telemóvel em punho, a digitar teclinhas? Poderiam, por favor, adiar o que estão a fazer por cinco segundos, que até podem ser a diferença entre a vida deles e a morte? E se eu me fartar de esperar? E se vier de lá um desabrido e nos amassar a todos uns contra os outros? Hã? Pá, menos dedos a mexer, mais cus.

3) Atravessam em diagonal, de costas, pelo que só dois ou três dos passos que percorrem é que pisam a passadeira? E a diagonal alonga-se tanto que me obriga a esperar ainda mais. A ti, peão da diagonal, fica aqui o meu apelo: a mim não me interessa ver-te por mais do que aqueles cinco segundos que dura o teu atravessamento, e estou-me nas tintas para os teus sapatos novos, para o teu cabelo fantástico e para o teu corpo uau. Sai. Da. Frente. Uau.

4) Julgam que a passadeira é uma ponte (e é uma passagem p'ra outra margem) e os carros que parem? E explicar a estas pessoas que os automobilistas não conseguem adivinhar as intenções de toda a gente que circula a pé no passeio e, às vezes, até já estão em cima da passadeira quando elas surgem? Nem tento.

5) Atravessam em passadeiras, à noite, em vias mal iluminadas, vestidos de cores escuras, e pretendem ser vistos a mais de quatro ou cinco metros? Ao menos, dancem. Façam flique-flaques. Andem munidos de isqueiros. Liguem o telemovelzinho, agora sim!

6) Em geral, os que atravessam sem agradecer? A estes não dava uma trancada, mas não era mal visto arranjar um apito de estrada e brindá-los. É ilegal, mas ia-me saber a ginjas. Também é ilegal irritarem-me e irritam-me. Olha. 

Só de me lembrar disto tudo já estou nervosa. Pxá vida.

4 comentários:

  1. Acho que sou o peão perfeito, lendo o que aqui escreveste. Não sou é o condutor perfeito. Às vezes, acelero para não deixar o peão passar. Depois levanto a mão num arremedo de pedido de desculpas. Mas só quando estou com pressa para alguma coisa. Que normalmente acontece...

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    1. Estás a escassos dois meses de mudar de perspectiva... :-)

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    2. Estou a escassos dois meses de ser um condutor mais disciplinado, queres tu dizer...

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    3. Pois. E um peão mais cauteloso.
      Enquanto condutor, todo o peão passa a ser filho de alguém ou pai/mãe de alguém. Enquanto peão, passas a ter a enorme responsabilidade sobre a pessoazinha que te espera em casa (ou vai a atravessar contigo).

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