Passei o reveillon numa festa do maior luxo e abundância, entre peles verdadeiras de marta e arminho, perfumes daqueles que nunca mais nos saem do nariz, nem que o arranquemos, penteados armados com duas embalagens de cola laca, bâtons de tons histriónicos, gargalhadas falsas e champanhe Moët & Chandon a escorrer pelas goelas delas e deles, ou delos, ou lá como é que agora temos que dizer, senão ainda nos açoitam, ai de mim se digo que sou heterossexual, apontam-me logo a unha gigante (como é que limpam o rabo com aquelas garras?) em guinchos de "binária!", dizia eu, eram cigarrilhas, música que nunca ouvi, à meia-noite silvos de foguetes e de gente inebriada com o espelho e...
Ah, era eu de pijama e robe, aquilo tinha sido um delírio ou um pesadelo acordada, tirem-me de ambientes desses, eu bebi uma garrafa quase inteira de Champômix e fiquei logo viciada, garanto que vou tornar-me dependente daquilo, como se fosse verdade que tem mesmo maçã. Ao passar do ano, chamada via whatsapp dos filhos todos, uns longe, outros perto, mas todos fora da minha asa, gargalhadas autênticas e votos bons, de coisas doces.
Meia-noite e trinta, a bela adormece, para só acordar ao meio-dia e meia, já do dia 1. Sento-me na cama e digo a cônjuge que vou correr. Era o prometido para o primeiro dia do ano, mas não àquela hora. Indiferente, a cidade dorme como eu até há pouco. E lá vamos, ele mais veloz, eu a meditar por que raio me meto nestas aventuras logo assim que raia o dia para mim.
Mas corri. Estava a terminar os seis quilómetros para os quais me determinara, quando vejo, a atravessar o caminho de todos os grandes atletas como eu, uma corda muito bonita. Parei (boa desculpa) e observei. Pensei: "Oh, uma cobrinha tão comprida, mas tão magrinha!". Uma vez que a minha prioridade não era alimentá-la, mas sim salvar-lhe a vida — em claro risco, devido à velocidade a que se deslocava e à quantidade de humanos que ali passavam —, pelo que agarrei num pauzinho, a ver se ela enrolava ali a cabeça e depois eu poderia atirá-la para as relvas, ou assim. Mal lhe toco com o pau, a coisa começa a desfazer-se como um Lego mole, em pedaços de três centímetros. Só assim percebi que se tratava de uma comunidade, pelos meus cálculos com sessenta e tal elementos — não tinha menos de dois metros de comprimento — e resolvi ir-me embora, a Natureza que seguisse o seu curso e eu o meu percurso.
Só mais tarde fui informada, de forma informal, que se tratava de uma fileira de lagartas do pinheiro, relativamente perigosas. Ainda bem que me pus à fresca. Não quero apanhar mais porras. E estava demasiado preocupada com o facto de ter dormido mais de metade do ano, até àquela hora.