27/05/2025

O que interessa é participar?

Blhag, não. O que interessa é ganhar; ou então, ficar numa posição que não envergonhe as gerações vindouras. Ai, "Os últimos são os primeiros". São nada. Os últimos a entrar num elevador estreito como os do meu prédio, são os primeiros a sair, senão ninguém sai. 

Só balelas.

Aqui há bastantes semanas, nem me quero lembrar, fui enfiar-me numa corrida à noite, para percorrer um milhão de centímetros. Não treinei grande coisa, por preguiça, falta de vontade e ânimo e por achar inútil. Cada um sabe de si. [Hoje estou inquinadinha de ditados populares.] Foi ainda no tempo das monções que este país sofreu, pelo que os três primeiros quilómetros foram feitos à chuva. Nada de especial, não fora estar um frio de ananases, mas a pessoa humana ia resguardada com uma camisolinha por baixo da camisola da competição, fora a manga que uso às vezes para que o braço não se transforme numa pata de elefante. Nem dei por ter parado de chover, pois já suava as estopinhas e outros paninhos ordinários. Mas ia determinada a não parar nem para beber água, de tal modo que até levava um cantil de dois litros às costas — e ainda hoje ponho a possibilidade de terem sido aqueles dois quilos a mais a prejudicar o meu resultado —, para não ter sequer que abrandar. É claro que, ao primeiro quilómetro, já pensava coisas ao melhor estilo vernáculo (é um estilo!), mais ou menos: "por que piiii me vim meter nesta m.?". Não me doía nada, nem os pés [agora encravam-se-me as unhas, a quimioterapia ainda circula alegremente. E também devo estar um nico radioactiva], nem os joelhos [que nunca doem, mas é uma queixa vulgar do povo], nem os pulmões, nem o burro. Mas doía-me, sobretudo, a alma, muito em particular quando me vi sozinha, de noite, numa cidade cujos contornos mal conheço, a tentar correr, e nem pelotão à frente, nem atrás, com a possibilidade (que teria sido superiormente inteligente) de me atirar para o chão e chamar os meus bombeiros, que me levassem para a barraca e me dessem miminhos, como já aconteceu. Ao invés, havia uma força estúpida que me ordenava: "Continua, bruta!". Devia estar no sexto quilómetro, a solidão iniciara-se há minutos, quando me aparece uma anja alada e me diz: "Vamos embora, juntas até ao fim!". Explicou-me que faz tracking e que, nessa modalidade, ninguém fica para trás. O último é sempre acompanhado pelo "vassoura". Então, começou a varrer-me na direcção da meta, os piores quatro quilómetros que já corri na vida. Dores, agora sim. Dores nas plantas dos pés, a queimar, dores nas ancas, dores nas mãos, a inchar como salsichas frescas, dores nas costas, dores na cauda equina, dores, dores, dores, e estrada, estrada, estrada. Não sei quantas vezes morri. Ia acompanhada da minha bruxa fada e dois polícias de mota, com muitas luzes azuis, ou eu já as multiplicava, tamanho e tão penoso era o calvário. Aproveitei e contei a história da minha vida à Vassoura, porque já estava a correr há mais de uma hora e estava aborrecida de estar calada. Pedi a um dos agentes que me deixasse acabar a corrida sentada na garupa do motociclo dele, e ele riu-se de nervos. Tudo me ocorreu, mas tudo corri e cheguei, atravessando a meta de braços vitoriosos (ainda não sei como consegui erguê-los naquele momento). Uma multidão esperava por mim para a ovação, um dos polícias tirou o capacete e disse-me que queria dar-me um abraço. Assim que o fez, segredou-me ao ouvido que nunca viu um exemplo de resiliência como o meu. Cada um dá-lhe o nome que lhe quer dar, eu acho que sou só teimosa como uma mula.