Chego perto dos elevadores e ela já lá está. Acaba de abrir-se o que chamou e tem à frente, encara perifericamente comigo — creio que o pescoço não mexe — e salta para o lado, para a porta do outro elevador, em cujo botão toca freneticamente, mas que, obviamente, não vem, visto que está o outro ali mesmo, à espera que alguém se digne entrar. Digno-me eu, com um suspiro inaudível (?), e sigo. Batalha esta inglória, visto que uma e outra íamos para o segundo andar. Confesso que nem ponderei ir pelas escadas, vinha de uma aula violenta de dança e carregada de tralha. Ela, por sua vez, carregada de fantasmas, que devem pesar toneladas: casaco comprido, botas altas, gorro até aos olhos, luvas. Faz-me lembrar uma criatura que viajava diariamente comigo no metro, há cerca de dez anos. E, de repente, apercebo-me que é exactamente a mesma pessoa. É filha da mulher do saco do El Corte Inglès, anciã que habita este caixote há tantos anos como eu e, desde que o marido morreu e o filho — que morava portas com portas com os pais, e cuja mulher me odiava por estar permanentemente grávida, como se eu lhe tivesse furtado a fertilidade e o mundo fosse injusto e Deus não tivesse uma justiça distributiva — se foi, levando a mulher e o São Bernardo que tinham enjaulado num T2, nunca mais tendo dado as caras nem mais parte nenhuma do corpo, que a mulher do saco passou a usá-lo como uma mala cara de estimação. Depois de várias conjecturas mórbidas que fiz acerca do conteúdo do saco, um dia apanhei-a distraída na paragem do autocarro e fui vasculhar. Decepção: eram só jornais. Ainda tive relações de cordialidade com a pessoa até ao dia em que ela chamou parvo ao meu filho — andava ele de skate debaixo da janela dela e a filha, aquela calmeirona para mais de trintas (ou oitentas?) queria dormir a sesta —, que nunca mais me viu a dentadura à mostra.
Portanto, a filha é assim desde muito antes do covid: deve ter a panca dos ácaros, das bactérias, dos vírus, do diabo a quatro patas. Anda por aí muita gripe A e também a outra sem direito a letra, tudo tosse, tudo funga, tudo se desfaz em ranho e eu, por uma vez, passo sambando na cara das inimigas. Também tenho meus macaquinhos no sótão, mas até acho que estou coberta de razões. Quando a outra pulou para o elevador do lado, pensei, hipocondriacamente: “Será que esta já sabe e, como é avariada da marmita, julga que isto se pega?”. Mas depois sosseguei a vítima que há em mim, com “Hah, ela faz isto com toda a gente. Eu, tal como os outros, temos a carraça, a lepra, o dengue, o E. Coli e a malária, tudo junto.”
É que nem imagina que eu tenho mais motivos para me proteger dela do que ela de mim.