03/12/2022

De onde vieste?

E lá fui eu para mais um exame, desta vez para verificar o motor de todas as emoções, vestido rosa forte, comprado na mais alta fraqueza dos tratamentos, no auge da vaidade, nunca me lembro de ter enchido tanto e em tão pouco tempo o guarda-roupa como na época da quimioterapia. Ia de saltos altos, sapatos quase novos que só muito recentemente pude voltar a usar, apesar de me ser conveniente não abusar da sorte, fazendo caminhadas com eles. 

Pergunto onde fica o serviço dos ecocardiogramas, a funcionária indica-me “à direita, a senhora percorre aquele corredor todo até ao fundo e depois é no último serviço, à esquerda”. Parece fácil até dobrar a esquina e aperceber-me de que o dito corredor tem uns bons cem metros de comprimento, mas quem diabos constrói um corredor daquele tamanho? Quase é necessário ir de carro, ou de patins. Não tendo um nem outros ali à mão, dou corda aos saltos altos e ala por ali afora, passando serviços vários, uma cafetaria, pessoas plantadas aleatoriamente como num cenário estático, algumas em cadeira de rodas, uma ou outra maca, cabeças virando-se na direcção da minha autoconfiança, não sei se foi bom, teria sido noutro lugar. Lá chegada, diz-me a que me atende que estou enganada, que o que eu quero está na outra ponta do mesmo corredor, reclamo que o hospital não tem um croquis na internet, não me sai disparate mais deslocado, rodo os calcanhares sem continência e acelero em direcção à casa de partida, pois a hora do exame aproxima-se a passos muito mais largos do que os meus. 

Sou atendida por uma técnica neutra, mas seca, olhar duro, que me ordena que me dispa da cintura para cima e me deite. Pergunta-me o nome completo, vê a minha ficha no computador e transfigura-se, agora a voz é suave e os modos são carinhosos. Diz-me: “O seu coraçãozinho está muito bem”, porque só vê o órgão. Falamos de cancro, de genética, de coincidências, pergunta-me se tive casos na família, que não, sou a primeira e espero que a última, “Onde é que eu fui buscar o meu cancro? Onde é que ele me apanhou? Será que também não dei uma ajudinha? Nunca vou saber.”, e então ela responde-me esta coisa extraordinária: “Às vezes é a tristeza que o traz.”