Vou à farmácia todas as semanas. Tomo tantos comprimidos que as caixas se revezam a chegar ao fim.
Desta vez, apetece-me não só manter em dia as doses que tem que ser, mas também comprar um creme maravilhoso para as pálpebras. Sim, as pálpebras. Uma mulher compra cenas para as pestanas, para as sobrancelhas, para as orelhas e o dedo médio do pé. Gastar uma pipa de massa com as pálpebras é só mais uma desculpa para sermos a encarnação do senhor dom diabo.
Entro e apercebo-me que, desta vez, e ao contrário do que é costume, também se encontra a dona do estabelecimento. Peço o creme a Jorge, o gigante, que, de cabeça baixa, me pergunta: “Para as pálpebras?”, “Sim, Jorge, não tente compreender.” Ele avisa-me que só à tarde, a dona da casa sofre um espasmo e entra em transe e em monólogo — provavelmente, com medo que eu desista da compra —, as mãos a tremer muito, a voz embargada, como eu ficaria ao fim de cinco cafés seguidos: “Mas também tem este aqui da Marti Derm, que é muito bom [conheço a marca, é tudo excelente menos o creme de noite, que cheira a esfregão e o raio do pote nunca mais acaba], e está com quinze por cento de desconto, sessenta menos quinze por cento [seis vezes três, dezoito. Tira dezoito a sessenta], mas não vamos cansar a cabeça, faço aqui na calculadora [burra, quarenta e dois], pois, bem me disse que fazia de cabeça, eu já não sou capaz, mas olhe, também temos aqui um kit, tem um frasco para de dia e outro para de noite, isto tem uma bolinha de metal na ponta e sente-se logo a frescura mal toca na pele [será chato dizer-lhe que, se puser a bolinha de metal num frasco com m. às colheres, sente à mesma a frescura?], e depois tenho aqui um outro, que só põe aqui [o dedo espetado na zona da olheira, um papo engelhado], mas só aqui, não põe aqui [na zona interior do olho], nem aqui [na zona superior do olho], só mesmo aqui [porquê, ó senhora? Fico invisual? Enruga-me mais? É um desperdício? Morre uma foca bebé? Morro eu, de catatonia por te ouvir?].
- Jorge, eu volto à tarde. Deixo o creme pago, para não me demorar outra vez.
Acho que amadureci. Os meus pensamentos nem sempre passam de intrusivos a verbalizações.