22/05/2024

O meu percevejo

Admito que sou muito atreita: tudo vem ter comigo, ele é cães a ladrar, ele é teias dos plátanos, ele é até piolhos — foram duras, as duas vezes que me atacaram, pois passei as fases quase todas do luto, desde a negação (muito duradoura, enquanto eles picavam e eu dizia que tinha uma dermite não seborreica, como se isso existisse), até ter tido que saltar a fase da raiva e ter passado directamente para a da aceitação quando, uma noite em que dormia plácida, um deles se atreveu a passear na minha testa, oh, meu amigo, aquilo foi morte imediata para ele, e pânico sem botão onde carregar para mim. A única lição que retirei dessas duas pragas foi a de que mãe que apanha piolhos, é mãe que abraça e beija. As piolhosas são as melhores mães. 

Por razões que não interessa aqui explicar, mas há que dar umas dicas, no passado domingo fui visitar um dos meus velhinhos — já tenho muito poucos, o que significa que estou quase a tomar-lhes a vez — que tinha tido há semanas uma praga de percevejos em casa, mas coisa para afectar colchões, sofás, maples, enfim, toda a mobília com panos, cortinados incluídos. Mas tinha mesmo que lá ir: íamos buscar um carro e eram precisos dois condutores para o regresso. Além disso, acho que valeu a pena, porque consegui fazê-lo dar a maior gargalhada que algum dia lhe ouvi, quando a cadela da cuidadora, que já teve cancro da maminha e agora tem no estômago, se deitou aos pés dele e eu disse: "Deixa lá, querida, estamos as duas na mesma". 

Tinha perguntado à cuidadora se era seguro lá ir, ela que sim, que estava tudo muito limpinho, e que nem ela nem o senhor tinham picadas novas há semanas. Fui, um bocado desconfiada, lembrando-me do caos que foi em Paris, com hotéis a fechar, infestados da bicheza, o que até compreendo. Eu, se fosse hotel, também fechava, então ia arrendar quartos com animais lá dentro? Há mínimos. Mas associei o histerismo ao do papel higiénico na pandemia (e nós, fabricantes de papel higiénico, achámos o quê? Que íamos defecar sem parar enquanto estivéssemos confinados?). Sentei-me numa cadeira estofada e ali fiquei meia-hora, falando e rindo, tudo muito corriqueiro. Vai daí, saio lá de casa e sinto picos nas costas, assim como se elas fossem uma bebida com gás. Queixei-me a cônjuge, que me respondeu que "isso é psicossomático". Pois, não eram as costas dele. 

Fiz a viagem de oitenta quilómetros, pica, pica, pica, mas cheguei inteira, apenas com menos milionésimos de mililitros de sangue no corpo. No dia seguinte, as minhas costas pareciam as de um adolescente, tive mesmo vontade de ir para a praia a sentir-me jovem, sei lá. Em vez disso: lençóis de cama, resguardo e toda a roupa branca que tinha usado no dia anterior, tudo para a máquina a 60º, a roupa preta usada naquele dia, para o congelador por quatro dias (ainda lá está, vou cheirar a lombinho e a almôndegas por uns tempos), secador do cabelo no colchão, no sofá onde tinha estado, na cadeira do condutor, pomada de cortisona, anti-histamínico (que não faça dormir, senão nem um terramoto me acorda), creme para as comichões ao preço de um metro de intestino delgado, e vá lá que não me mandaram enfiar numa banheira cheia de enxofre. 

O que é certo é que não apareceu bicho nenhum, as borbulhas não alastraram e estão a secar. O meu percevejo era macho — caso contrário, ter-me-ia deixado bebés nas costas, e nada. Seria uma fêmea estéril? Nunca saberei —, pouco fiel à pessoa, mas muito à santa terrinha, o que, na essência, foi a melhor opção. Eu não poderia aturá-lo por muito tempo, acabaríamos à briga, um de nós teria que morrer e era demasiado trágico para arriscar tal cenário.

Adeus Percy*, até nunca mais.


* Percy: Significa “furar barreiras”, “perfurar cercos” ou “filho do fogo”. Inicialmente, Percy foi um sobrenome inglês toponímico, derivado de uma cidade normanda chamada Perci-en-Auge. Este era um sobrenome bastante comum entre a nobreza inglesa.

Fonte: https://www.dicionariodenomesproprios.com.br/percy/