Caminhava eu a passos estreitos pela ladeira, rodeada de arbustos e flores exageradamente aromáticas — madressilvas, lavanda —, quando ela se cruza no meu caminho e me prega o susto do dia: conheço-a há décadas, mas não me lembro do nome dela. Já era, ao tempo do início da primária da minha primogénita, e ainda é, auxiliar. Agora tem um nome mais pomposo, tipo hospedeira de solo infantil, ou técnica superior de pim-pam-pum, mas não me lembro de qual é. Acho-a sempre igual, só muda a cor do pêlo — cabelos, sobrancelhas e pestanas branco-branco, aquele da neve e da cal. Abre-me os braços, muito espalhafatosa — sempre me deu a ideia de que ia desatar a cantar o fado a todo o momento, aquela inclinação da cabecita para trás enquanto fala dois tons acima do necessário, é algo sugestiva —, prega-me dois beijos, pergunta pelos meus e queixa-se que não me vê há muito tempo. Digo-lhe porquê sem entrar em pormenores sórdidos — o de ter arranjado caminhos alternativos no bairro para que ninguém me visse, por exemplo —, e então ela sai-se com esta:
- A [Linda Blue], sempre aquela fortaleza, um dia foi-se abaixo. — E nisto, aquele gesto polegar-indicador, que percorre da cabeça à pança.
Devo ter ficado tão atónita, que ela repetiu, agora com mais ênfase:
- A [Linda Blue], sempre aquela fortaleza, um dia foi-se abaixo. — Juro que a vi empunhar um par de bandarilhas, que me enterrou no cachaço e até gritou “Olé!”, a bater os pezinhos no chão.
Lá acabei de subir a ladeira, sangrando do pescoço e rindo não sei de quem, se dela, se de mim, que nunca na minha vida fui uma fortaleza, nem nunca me fui abaixo. Acontece que adoeci. Sei que vou deparar-me com estas pessoas para o resto da vida. Quando menos esperar. Quando estiver, como estou, cada vez mais forte. Não tenho vergonha de dizer que à custa de muita terapia.
Balas perdidas? Apanho-as com a palma da mão. Não me atingem a cabeça, enterro-as com um pé.