01/01/2023

Só desgraças

Antevéspera de Ano Novo e a desgraçadinha do costume a sentir um incómodo todo o dia, idas ao chichi de vinte em vinte minutos, ai isto são nervos (mas de que mais?), ai ando a beber demasiada água, ai devo estar a ficar incontinente, depois era aquela dorzinha, aquela vontade de desmaiar na loja — pudera, quem não, com um casal horrendo à minha frente com dois filhos horrendos a demorarem uma eternidade para trocarem não sei que merda por um sutiã de cetim azul escuro com uma rendinha parolíssima, pináculo da sensualidade para ele (?), que dançava (pessimamente) ao som da música ambiente da loja —, todo um cenário que me disse: “Vai ao hospital, histérica, depois mete-se o Ano Novo [aprecio a expressão] e já a tua infecção te chegou ao cérebro”, porque eu sou eu e eu sou essa, que anda sempre a desafiar a septicémia, e foi assim que, à hora de jantar, pouco mais ou menos, vi na nettinha qual o que levava menos tempo a atender-me e ala para as Descobertas, qual conquistador. Lá chegada, sou logo avisada que, afinal, o tempo de espera são duas horas. Bem gemi ao enfermeiro que necessitava de uma pulseira amarela (até porque combinava melhor com o vestido do dia), mas o implacável algemou-me com uma verde. Há-de ser lagarto, com certeza. Ou estava nauseado por estar a trabalhar na antevéspera de Ano Novo, esquecido do quão aborrecido é estar doente nesse mesmo dia. Se calhar, preferia trocar comigo.

Aguardei exactamente duas horas, durante as quais aturei um excitado casal italiano, que berrava e gargalhava, ou seja, me impediu de, ao menos, dormitar um nico. Estou neste ponto de velhice. O excitado tinha pulseira amarela, o que me levou a concluir pela xenofobia do enfermeiro da triagem em relação à minha pessoa. Depois fui atendida por um médico em cerca de quatro minutos, que confirmou o meu diagnóstico e me receitou, assim como me mandou fazer urinocultura. O enfermeiro que me recebeu apresentou-me um frasquinho anatomicamente adequado para recolher urina a um recém-nascido rapaz, e perguntou-me assim: “Já alguma vez fez colheita de urina asséptica?”, veio-me a vontadinha de responder: “Fiz quatro cesarianas, quimioterapia, radioterapia, tamponamento nasal e mais mil porras, mas realmente recolher urina é que nunca”. Ao invés, respondi: “Sim. Tenho que me lavar primeiro, deitar fora as primeiras pingas de chichi e depois encher esse frasquinho minúsculo, no qual me será impossível acertar”. Afinal, não. O homem explicou-me todo o processo com uns pormenores sórdidos de tal forma, que só pensei: “Não acredito que estou a ter esta conversa com um estranho”. Depois de praticar diversas posições de ioga na casa de banho do hospital, fui aviar a receita do médico, tomei o antibiótico e, passada uma hora e meia, já em casa, tive um ataque de frio que me pôs os dentes a bater como castanholas e me levou a ponderar que me finaria em breve, tipo em minutos, mas isto já no dia 31. Mesmo à parva, falecer no último dia do ano. Pelo menos, fiquei a saber o que sente uma pessoa que morre de frio. 

Calma. O importante é que entrei em 2023 recuperada deste desaire. A ver se o ano não me é tão padrasto como o anterior. Chiça penico.