29/12/2021

Eu tenho problemas com médicos # 26

Logo havia de me sair à rifa um oncologista giro. Ou melhor, assim como o dentista, com uns olhos bonitos. O resto, enfim, a máscara mascara, mas não há-de piorar o todo. Ainda por cima, gosta de mim: acredita na minha cura, exulta quando vem um exame bom — o resultado do PET deu direito a um meio abraço (desses em que cada pessoa dá só um braço, portanto, um abrá), o que, no meu caso, foi difícil corresponder, já que o humano goza para aí de 1,90 metros de lonjura e não me pareceu bem trepar por ali acima —, que se ri das minhas piadas estafadas e quase inconvenientes (e sim, utilizei a imagem do “parto da vaca” para descrever a resolução da obstipação), enfim, só falta mesmo tratar-me de graça. Hah, não quero. Basta que me trate com graça. Ave Maria.

Recebeu-me na véspera de Natal em consulta, exactamente como se fosse o dia mais vulgar do ano. Vesti um vestido preto de flores cor-de-rosa, zero elastano (este pormenor interessa lá mais para a frente), com um pequeno fecho a apertar de lado, sapatos de salto alto, e levava na cabeça o ainda meu cabelo, lavado e encaracolado como um pufe. Era a minha roupa de Natal, não para ir fazer análises (em jejum…), teste de covid e ida ao médico. Mas ia vaidosa, apesar de esfomeada, uma vez que não tive tempo de tomar o pequeno-almoço entre tantas démarches. 

Só nunca imaginava eu ouvi-lo dizer “Sente-se ali”, apontando com a cabeça para a marquesa, “que eu quero vê-la”. Era a segunda consulta pré-tratamento, na primeira não tinha havido mais do que diálogo, então achei que aquela iria ser igual. Bem mandada, sentei-me na dita e fiquei a sorrir, quietinha. Pode ter sido da hipoglicémia. O médico a olhar para mim e eu sentada na marquesa, a sorrir atrás de uma máscara cor-de-rosa. Devo ser parva.

Teve, então, que apontar para o peito e explicar que tinha que mo observar. Foi aí que me fiz cara, explicando que tinha que despir o vestido todo, uma vez que não era desses de baixar pelo decote até à cintura. Em suma, não tive outro remédio senão ficar de collants, sentada na marquesa, estúpida e nesnudada. Nunca acerto com a merda da indumentária, já para as festas é o mesmo desassossego. 

Hei-de experimentar o fato-macaco, fecho eclair à frente e tudo. Festas incluídas.


27/12/2021

Despedi-me do meu cabelo, sabes?

É para ti que escrevo hoje, que entendes da importância que tem — tinha, teve, terá — o meu cabelo para mim, e não consideras a peruca uma futilidade,

como me cansam as pessoas da “solução” que são “as soluções tão giras que há hoje em dia, com lenços, turbantes, toucas”, mas eu lá sou mulher de turbante? Ainda ninguém me sugeriu um hijab, um nikab, não sei como não, se essa é que seria a fórmula certa que me levaria à rua, sem medo do preconceito — enfrentando outro? — da doença, as pessoas estigmatizam e rotulam quem tem cancro, eu sei porque sou pessoa. Nunca o fiz por maldade — e que mais maldade se pode fazer a quem já carrega uma assim? —, mas por pena, por Deus-me-livre, por condenação à vista.

Foi ontem, durante a manhã tocava no cabelo e saíam fios aos dez e dez — não que os tenha contado um a um, mas, se não eram dez, eram onze —, sei que larguei umas lágrimas, talvez também umas dez — podem ter sido onze, um dos meus olhos chora sempre mais do que o outro, deve ser o do lado adquirido, porque o do lado inato sorri mais bonito, estou em crer que choro sempre em número ímpar, eu, que não gosto de ímpares e agora vou estar praticamente um ano com idade ímpar, é que me dá transtorno obsessivo a desigualdade —, e então liguei para uma espécie de anjo que tem um cabeleireiro e exerce a profissão, não queria que a mutilação fosse operada em casa, por uma das crianças — que, entretanto, se fizeram mulheres e homem e se ofereceram —, queria o egoísmo meu a um domingo, salão fechado a abrir só para mim, e o mimo todo da minha Sandra (tenho várias Sandras na minha vida, e são-me todas tão preciosas, que, caramba, só pode ter a ver com o nome) para aquele momento que auspiciava de terror e a acabar em desmaio meu.

Fui encontrá-la mais nervosa do que eu, queria cortar curto, “Rape, Sandra”, e ela começou a cortar, não cortou madeixas grandes, não vi as minhas ondas no chão, vi a minha vida em retrospectiva, eu aos vinte e poucos na faculdade, com o cabelo pelos ombros, eu aos onze anos, com o cabelo à tolinha, eu aos quatro anos, quando cortámos, a mana e eu, rente à cabeça, e, finalmente, eu. Hoje.

Tenho uma cabeça muito bonita: lisa, sem marcas — porque tive sempre o cuidado de “partir a cabeça” em zonas visíveis, na cara —, sem ondas, sem uma borbulha. Só mais um ou dois rubis, sinais vermelhos minúsculos que também tenho no corpo (três? Talvez quatro, para não ser ímpar). 

Quando saí, abracei a minha Sandra, ela em lágrimas a garantir-me, quem sabe se não cientificamente, que eu vou ficar boa, eu seca dos olhos, porque já tinha deitado aquelas dez. Não devem ter chegado a onze.



22/12/2021

Sedação e obstipação

A razão das minhas histórias, actualmente, é sempre a mesma: estou embrenhada num admirável mundo novo, em que, lá está, tudo é uma novidade.

Outro dia fui pôr um cateter permanente, a ver se as veias não fritam com os tratamentos. Ia convencida de que era chegar, abrir, mete lá o plástico e cose. Quando me mandaram ir em jejum, comecei a desconfiar que ia passar o dia com os ritmos biológicos todos baralhados. Mas pronto, lá fui. Um aparato de despe e veste só uma bata (e umas cuecas que nem a minha avó algum dia), bloco, anestesista, “vamos só dar-lhe uma sedação, não é anestesia geral” (eles temem-me, porque a quantidade das que já fiz não cabe nas linhas todas dos relatórios deles), gente de touca e coisas metálicas nas mãos, todo um cenário de cozinha que me dizia “Olha agora…”. Mas ainda bem que sempre fui, mal me espetaram a agulha na mão, já a veia espichava e foi chato. Vá, fizeram aquilo, ou melhor, isto (que é só horroroso, vê-se perfeitamente uma peça de plástico entre o seio e o ombro), a mim a sedação deu-me para a moca, que nunca mais os ouvi, mas, pelo menos, deu para levar um elogio, “Dona Maria, portou-se muito bem”. Se calhar até ressonei, de tão bem comportada fui. Os outros operados da sala de recobro foram todos marchando, um a um, todos intervencionados depois de mim, mas eu sou de aproveitar as lanzeirices até à última gota e xonei-as ali três horas, que foi um regalo e, convenhamos, uma aflição para a minha família. É não me drogarem.

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Nessa mesma tarde, indigitaram-me a estar num outro serviço, para colocar um clipe no tumor, não vá ele tornar-se invisível e o cirurgião, aquando da operação que virá para o ano, já não o encontrar. Então, fui, sem saber se havia de me pôr outra vez em jejum, mas, à cautela, com um naco de tofu mais couscous para aconchegar. Esperei educadamente na sala de espera, isto passou-se uma hora, ele passaram-se duas e nunca mais chegava a minha vez. Lembro que estava drogada, por isso precisava de curtir a minha trip sem que ninguém me moesse o espírito. E tinha um senhor já com idade para ser irmão mais novo do meu pai com os olhos pregados em mim. Certo que podia estar apenas interessado em verificar se eu adormeceria efectivamente — dada a evidência de que o ia fazer —, ou a apostar consigo mesmo quantas vezes o faria no espaço de um minuto, por exemplo. Experimentei mudar de lugar, até mesmo para me recatar melhor, e lá veio o homenzinho atrás de mim, para se pôr exactamente à minha frente, olha o paradoxo. Entretanto, ao telefone com a respectiva sponge. Um clássico, quem não sonha uma adolescência inteira com este exemplar? Estimo que ela o chifre na mesma medida. 


De todo o modo, adormeci. Que bom é termos que usar máscara em locais públicos fechados: dá para, caso seja o caso, dormirmos de boca aberta e tudo. Até o fiozinho de saliva pode aflorar num canto, ou mesmo nos dois, pois aquilo há-de absorver. Bom, assim que me chamaram, fui para o gabinete do médico, ainda me encontrava naquele mesmo transe, e fui até um pouco contrariada de não me darem mais um par de horas para descansar na sala de espera. Não entendi por que é que chamam clipe àquilo, podia perfeitamente ser agrafo ou pionés, ou até anzol, uma vez que o médico nos espeta um agulhão arpão na mama para lá o colocar. Se tive medo/ dores/ puns mentais? Oh, filhos, eu apanhei-me numa horizontal e já só acordei ao som de “Acorde, Maria. Ou quer ficar aqui a dormir?”. Sim. A resposta era sim.

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Ainda estou indecisa se um destes dias aqui explico, da forma menos gráfica que conseguir, a verdadeira acepção do termo “obstipação”, que é outra das alegrias oferecidas de borla pela quimioterapia. Adianto apenas que agora sei o que sente uma bovina nos segundos imediatos do pós-parto: orgulho. Muito orgulho. E uma breve dúvida, no que serão os possíveis pensamentos da puérpera em questão: “Olá… Será que isto ainda me vai dar uma marrada?”.


14/12/2021

A sorte ou a luta protege ou ataca os audazes ou os valentes?

No domingo passado, apanhei-a de surpresa, à entrada da aula de dança, estava ela baixada a apertar os atacadores aos ténis — já lhe ensinei mil vezes o truque de molhar os atacadores, mas parece que não há nada que resulte com os dela —, baixei-me um pouco e disse-lhe ao ouvido: “Amanhã vou começar a fazer quimioterapia”. Ela ergueu-se, esqueceu os ténis, abraçou-me, enorme, depois olhou-me bem dentro dos meus, com os dela igualmente marejados, e disse: “Sabes, querida, essas coisas só acontecem aos valentes porque são os únicos que são capazes de lutar”. E, por aqueles breves instantes, eu acreditei nas que me pareceram sábias palavras, vindas de uma mulher tão grande quanto delicada.


Não deixes de vir dançar.”

“Não deixo. Só mesmo se tiver muita vergonha da peruca ou de vir de lenço. Mas queria que soubesses que, se desaparecer por uns tempos, não foi por me ter enjoado das tuas aulas.”


E dançámos durante uma hora, numa sala, embora cheia, sozinhas, cúmplices e em sintonia afectiva.