Findas que estavam umas mini-férias (na verdade, são todas mini, até as que duram meses, se é que isso existe) com a minha primogénita, escapadela que damos desde há quatro anos, fomos proceder ao check-out. Pedimos cartões para o comboio de acesso à praia e um lugar no estacionamento mais perto do cais, para que pudéssemos gozar mais meio dia de praia. Já tínhamos estacionado quando a criança me lembrou que eu deixara o almoço no apartamento. Por uma vez, não queríamos demorar no processo de ir a um dos restaurantes dali, pois tínhamos o tempo contado para fazer a viagem ainda de dia. Eu ai, que me esqueci no frigorífico, ela, ai, não faz mal, eu vou lá. Palmilhou dali até à recepção (muitos metros), da recepção ao apartamento (mais muitos metros), do apartamento à recepção (ainda mais muitos metros), da recepção até mim (tanto metro percorrido por causa da cabeça de ervilha da progenitora).
Íamos nós até um bocadinho lampeiras por aí afora no comboio, quando eu olho para o escancarado saco dela e vejo o cartão a resvalar, ou melhor, a derramar como água para a areia que envolve a zona dos carris. Ainda estava toldada por aquela sensação de estar em dívida para com minha petiza. Pus-me então em pé e gritei: “Motorista!”, que era para o homem puxar do freio. Repeti e ele nada. Hei-de experimentar “comandante”, ou “vossa altiveza” quando lá voltar. Achei prudente não me atirar do comboio abaixo, não fosse aquilo agarrar-me pelos pés e cortar-me as unhas para lá do sabugo, ou assim. E a máquina avançava, avançava. Lembrei-me então que, pelo meio do caminho, aí a uns setecentos metros da partida, ela teria que parar, para dar passagem à do sentido contrário. E parou. E eu pulei do comboio e descalcei as chanatas. Então, desatei a correr pelo cimento e pedras com bolinhas até ao sítio onde poderia estar o cartão. Não estava, mas vislumbrei um varredor de areia ao fundo, corri para ele, estanhado, mil dentes — ou mil falhas? — “Ah, é você?”, a querer conversa parva, só lhe disse: “Saudinha” e zás, de volta. O meu vestido de flores e folhos, um jardim em movimento, os meus cabelos ondulados cheios de vida, palavra que nunca me custou tão pouco correr mais mil e trezentos metros. Sentia-me etérea e potente, capaz de todos os meus impossíveis. Provavelmente, alguém viu apenas uma idosa desvairada, descalça num pavimento inacreditável, eventualmente a ter um surto em bom. Eu vi o mar, mergulhei por necessidade animal e garanto que, se nesse dia não me nasceram guelras, então também já não vão nascer nunca.