30/07/2025

Uma palavra tão grande

Aqui estou, desta vez de acompanhante ao exame, que leva sedação e obriga à presença de adulto, não vá o examinando sair tonto e incapaz de pagar e chegar a casa. Já em tempos o fiz, dormi justamente até um sapo me acordar, anunciando-me que teria de me tirar uma parte do intestino. Depois não foi preciso, mas entrou no campo do desagradável.

São horas de espera, já esgotei os jogos do telemóvel, os sudokus desta vida, já me fartei de ir buscar água ao dispensador, já alarguei as calças na cintura, que estava quase serrada ao meio, já só me falta dormir, que é o que mais me apetece agora e tantas vezes.

Surge uma mulher de quase oitenta, rica de carnes e com aquela boa disposição que eu tão bem conheço — quando um exame corre bem, quando dias de angústia dão a vez ao alívio —, mas que me soa falso, “Vou pôr toda a gente alegre!”, e depois, para aquela que vim a perceber ser a irmã, “Não foi preciso biópsia”. Ninguém ficou alegre, eu solidária, devo ser egoísta, mas por que raios devo exultar com o facto de a mulher não ter precisado de biópsia? Seguem-se vinte minutos de tagarelanço alto e bom som, que domina a sala e a mim me traz o pensamento invasivo de lhe gritar: “Cale-se, porra! Mais valia que lhe tivessem feito a biópsia, era capaz de estar menos eufórica”. Mas sou uma pessoa crescida, fico a remoer o beca-beca, a pensar, “Não há mal que sempre dure”. Fala de pólipos, de manchas, de massas, de caroços, até que diz:

- É que a palavra ‘cancro’ é uma palavra tão grande.

É verdade, sim senhora. Enche a boca de fel, o peito de ar sujo, as mãos de suor, os nervos de farrapos e as noites de pavor. Mas também há momentos dessa alegria, que nos tiram daquele vulcão fundo lá na Indonésia, onde caímos sem saber como nem porquê.



21/07/2025

A mulher que podia ser minha mãe # 9

Ligo-lhe porque, da última vez que os vi, notei ambos muito preocupados, ela sob a forma de chiliques e suspiros, ele sob a forma de magreza — ainda mais do que antes — pronunciada, sem uma queixa, sem um desabafo. A idade avançou-nos a todos, passaram quase três décadas desde que os conheci. Atende-me aos ais, a voz dele suave e firme ali ao lado, a responder por ela às perguntas que eu fiz, que sim, que há um “oma” no corpo dele, vai fazer o PED, eu tento acertar-lhe o passo da descrição, PET, o temido exame que diz por onde é que o oma anda, se está circunscrito ou se já minou por todos os cantos. Ela entaramela a voz, está claramente anestesiada por auto-recriação que sei que faz, ele lúcido como um rapaz, apesar dos oitenta e sei lá. Sinto-a choramingar e lutar contra a perda de compostura, num óbvio acto de coragem “por ele, para não o assustar mais”, enquanto tresouço a voz dele a conformá-la do medo, das certezas — pois é médico — que terá por via de um mal que o assola a ele. Não há como construir uma estaca de sustentação feita de massa mole, quando a árvore começa a entortar com o tempo e o vento. Será ela que terá que se aguentar de pé e ainda fornecer forças para que a estaca não quebre.


16/07/2025

Ela fala tanto # 33

Por exemplo, digo-lhe para fazer almôndegas para o almoço e ela responde-me com a descrição ao pormenor da casa de uma das irmãs na Costa, que afinal é uma tenda no Piedense, cujas segunda e terceira letras troco sempre sem querer quando rarissimamente lá passo e que só ficará na História da criminologia portuguesa por ser onde estavam instalados os pais e a própria Ana Cristina, único e dos mais tristes homicídios de que há registo, cometido pelo gang do multibanco.

É muito cansativa.

Mas mora ali um coração grande e bom, o que deve limpar toda a porcaria que me mete pelos ouvidos adentro. O pai dos filhos, com quem mora desde os dezasseis anos, tem uma pequena reserva onde instala animais que vai apanhando feridos ou abandonados. Tem lá, neste momento, dois casais de patos-bravos e uma galinha. Tirou a guia aos patos para que eles não voassem, e os dois casais lá se reproduziram, não sei se o mesmo pato com as duas patas ou se duas para dois, esqueço-me sempre de perguntar esses pormenores. Também porque receio que ela me conte a história da fractura da mãe, que nunca sei se foi de um braço ou de um pé porque entro em off quando ela começa a desbobinar. 

A verdade é que as duas patas ficaram chocas, dez ovos cada uma. Os primeiros dez nasceram algumas semanas antes dos seguintes, eu vi o filme e comovi-me porque também sou parva e o milagre da vida agrava-me essa característica. Entretanto, morreram três, pois a tal vida também consegue ser estúpida e ai a selecção natural e ai a lei do mais forte e porras. 

A segunda pata cansou-se de chocar ovos, é capaz de ser muito jovem e ou tola, deixou três ao abandono e foi à vida dela cuidar dos séptuplos. A galinha ficou choca, não tinha galo, não vai de modas: chocou os três ovos e nasceram-lhe três patinhos.

Diz que parir é dor, criar é amor, pelo que a galinha e os patinhos convenceram-se de que eram mãe e filhos. Só que a pata parideira e abandónica reconheceu aqueles três como sendo seus. Ao início, bicava a galinha como se a desgraçada fosse uma raptora ou uma subtractora de menores. 

Não sei como é que se entenderam. Sei só que, actualmente, andam as duas patas e a galinha a rodear os patinhos em todo o espaço, e ai do gato ou de outro animal qualquer que tente atacar os pequenos. Terá primeiro que lutar com as três mães até à morte.

Eles comem cascas de frutas e legumes. Dou comigo a descascar kiwis, deixando a casca cada vez mais grossa. A taça da alface fica a pouco mais de meio, para poder juntar tudo e, no dia seguinte, os patos terem refeição. 

Eu também falo muito.



12/07/2025

Quase

Fui lá por ir cumprir uma obrigação familiar, mas, e principalmente, por querer voltar a um lugar onde sentisse de perto a minha mãe. Na verdade, iria sempre, aqueles são lugares onde posso observar as pessoas com calma e tempo, onde a loucura é a regra do normal e onde a paz reina, apesar de, uma vez ou outra, soar uma voz alterada. Como a da mulher da cadeira de rodas, pele tostada em contraste com o cabelo todo branco, mas, sobretudo, com os dois lampiões azuis no meio da cara. 

Ando a ver do meu homem, não sei onde se meteu.

Sentei-me à mesa para acompanhar a refeição do aniversariante, e surge-me pela direita uma cadeira a rodar para trás, um homem bonito de olhos com riso e gozo lá dentro, logo para mim,

Boa tarde, minha senhora.

Olá. Como vai o senhor?

Eu estou bem, mas estou quase lá.

Não sei se não chegoantes.

Veja se consegue chegar, para me receber de braços abertos.

Os risos que seguiram este pequeno diálogo foram um coro em profundidade e duração, gargalhadas infantis pelo inexplicável inesperado, inesquecível ou não. Nunca recebi um piropo macabro, ele já os deve ter dado sob todas as formas, o criminoso, vestido exactamente com o uniforme de um cavalheiro sem fraque: calças bege, sapatos de vela, pólo azul, leve casaco de tecido. 

Depois da sopa, anuncia: 

Vou fumar.

Não quer sair dali e faz o desafio:

Queres vir, Linda?

Não posso.

Porquê, estás doente?

Já estive. Não posso fumar, não posso beber, isto é uma vida de convento.

O que é que tiveste?

Cancro.

Ai, foda-se.

Logo as duas mãos na boca, cruzadas uma sobre a outra, como se andar de cadeira de rodas fosse pedra leve, calvário de apanhar flores.

Fume lá um por mim.

Fica descansada. Eu já volto.

Não voltou. Ficou no pátio a fumar, não sei se um, dois ou mais cigarros. Não jantou, ali se deteve noutro lado e não me acenou de volta quando me fui embora. O mergulho que deu nalgum lugar tirou-lhe a fome e fê-lo voar com o fumo, enrolado nos seus galanteios, esquecido. 

Deve ter razão, é capaz de estar quase .