17/06/2025

Eu sou aquela pessoa que nunca, em circunstância alguma, deves levar ao supermercado # 63

Acerco-me, confiançuda, das caixas em que a gente, pessoas humanas, é que faz tudo: desde o registar ao pagar — no qual deveríamos ser agraciados com um respeitoso desconto —, ao ensacar, nada passa pelas mãos dos funcionários. Isto, claro, em se tratando de um vulgar terrestre, já nado com o dom da tecla e da leitura óptica. Em cada compra das minhas, o mínimo de vezes que chamo a ex-antipática do braço entrapado são umas três. Hoje, perdi-lhes a conta. Fui confrontar-me com uma máquina que absorveu o mau génio que dominou em tempos a ajudante-de-clientes-aflitos, e que implicou comigo logo à cabeça. Primeiro artigo, um par de rolos de papel de cozinha. "Artigo desconhecido" [Oh, Deus, queres ver que vim comprar ouro em pó?]. Ela veio, tocou em trinta e dez botões, passou aquela coisa que parece um secador de cabelo [hei-de experimentar] por vários cartões que trazia no bolso, e sentenciou: "Pode continuar." Continuei. Passa isto, passa aquilo, tudo a eito. Ah, não, espera. Passei um artigo que pesava vinte gramas e a máquina indiferente. Passei uma embalagem de fiambre, põe-se ela: "Peso de artigo não especificado". [Fiambre já pesado na fábrica, capaz de ter uma barata a dormir dentro da embalagem, chiu, não acordem a menina]. Lá veio a senhora dos botões e da leitura óptica e repetiu que continuasse. Estava aqui a pessoa a passar uma embalagem de cajus, atira-a com uma certa determinação para aquilo a que chamam balança, mas que mais não é do que uma passadeira estática (como, aliás, deveriam ser as de todos os ginásios), vê lá escrito Caju - não sei quantos euros, mas não vê os cajus em parte nenhuma. Rebusca no tapete dos registados, Ai, queres ver que sou o novo David Copperfield e, ao invés de um avião, faço desaparecer frutos secos?, nada do pacote, rebusca no chão, na vizinhança e, atónita, exangue, lá chama outra vez a amiga loira, que vem a rir, e ainda se ri mais quando lhe é explicado o facto. Depois encontra os cajus atrás da máquina, toca em mais quarenta e oito botões e usa aquele taser [não sei como não na minha testa] e some-se, não para trás da registadora, mas lá para o posto de vigia dela. Tento, então, passar um conjunto de três embalagens de toalhitas para a higiene do povo do lar, que a gente é suavemente limpinhos e, ao preço a que está o papel higiénico, mais vale isto, mas verifico que não tem um código de barras único e lembro-me que não sei multiplicar por três lá naqueles botões do ecrã. Por isso, rebento a fita que os une e pretendo passar um a um, que lá somar, isso sei. Passo o primeiro, pouso na passadeira e leio logo: Peso errado, ou coisa que me valha. A outra aparece-me e explico-lhe a minha enésima dificuldade, e é então que ela me esclarece que cada código daqueles é referente às três embalagens de toalhitas. Continuo sem entender, visto que acabei de passar seis litros de leite e tive de os virar de cabeça para baixo porque a asa com o código está no topo.

É claro que, muitos minutos depois, chegou o momento do pagamento. E paguei. E enchi um saco de supermercado, para além do meu, íntimo e pessoal, que já transbordara desde a cena do papel de cozinha. Tudo aquilo me exaspera. A alternativa, que é alguém registar as compras por mim, simplesmente não me assiste. Demasiada conversa parva para meus actuais parâmetros. A velhice tem destas coisas: poder escolher, poder dizer “não”, poder não dar contas porque. E peguei no segundo saco e o cheiro a peixe podre era assim algo de histriónico. Todo molhado por dentro. A água que teve, apodreceu ali. E eu a pensar numa solução. Tudo, menos chamar a minha já velha serva. Vou comprar outro saco. Não, tenho dezenas em casa. Vou deitar este fora. Não, este pesadelo custa uma parte do intestino grosso. Vou comprar sacos de plástico. Não, que eu sou pelo bem. Vou deitar-me para o chão e gritar que quero a minha mãe e que estou farta de viver estes pesadelos acordada, e depois, quando efectivamente acordo, são verdade. Vou fugir. Deixo aqui as m. todas e defeco no assunto. Não posso. Já entrei na recta da meta. E essa é uma rota de colisão. Então, a mais luminosa que me ocorreu foi pegar em parte de um dos rolos de papel de cozinha e limpar aquele nojo, enquanto paguejava, P. da minha vida, só me acontecem m., depois de todas as m. por que já passei aqui, agora tenho o c. do saco a cheirar a escargots podres. É isto, a velhice. É tudo descarrilar e ainda termos forças para trovejar, encher o saco com mais dez quilos de trampas e levar tudo para o lar. 

Um dia acertamos contas, Hades. Há-des ver.