04/12/2025

Ao sétimo dia, Deus descansou

Fui à missa de sétimo dia da mãe da minha amiga maior — embora seja pequeníssima —, e mais antiga — ela com dez anos, eu quase, quase a fazê-los —, já um pouco menos triste e desolada do que na semana anterior. 

Começou logo mal: tínhamos — ela e respectiva família, uma outra amiga (amiga de amiga, óbvio que logo ficámos amigas), uma estabanada que anda no mesmo ginásio do que eu — as primeiras dez aulas de dança, fê-las de calças de bombazine castanhas, cabelo num quico espetado derivados do ondulado cerrado do cabelo, que venho a saber pertencer ao mesmo local de trabalho da minha quase-irmã, e eu — ficado no banco da frente, como próximos da falecida. Quando o padre apareceu, nós, que éramos seis mulheres (e um homem) naquela fileira, proferimos um "Oooh!" em uníssono, tal e qual fôramos o coro da igreja, simplesmente porque o padre era giro que dói. Ele começou a rezar, assim com um ar blasé, julgo que não prestámos grande atenção ao ritual, mas até aí tudo bem. 

Veio o momento da comunhão, ao qual não comparecemos, pois já estávamos todas em pecado e nenhuma de nós recentemente confessada (e ainda bem para o padre, coitado, horas e horas de prosa em monólogo). Desde o Senhor Covid, mudaram alguns costumes na missa: o padre já não mete a hóstia na boca dos fiéis, e sim nas mãos postas em concha. Percebo o alívio dos padres nessa mudança, que deviam lavar as mãos com criolina no fim da eucaristia, e assim já só precisam de lixívia. Também mudou aquela parte do beijinho, que era uma nojeira, em criança deixavam-me as bochechas a escorrer baba e eu, tão educadinha, em vez de me limpar ao ombro do casaco, permitia aquele abuso de menor. Agora é um abracinho, mas não há cá esfrega-esfrega, é mais o abraço de lado, à americana. Os comungantes puseram-se em filinha-pirilau, todos a receber a hóstia nas duas mãos, até que veio uma jovem magrinha que se ajoelhou e recebeu o sacramento na boca. Uns passos adiante, vem outro jovem, vagamente abastecido de chichas, atira com os dois joelhos para o chão, pondo a língua de fora. A língua dele só era comparável a um bife da vazia, uma coisa enorme e larguíssima. Quase posso jurar que o padre se sobressaltou com tamanho naco de carne, capaz de matar a fome a uma família numerosa. Nesse momento, perguntei à do lado: "O que é aquilo?", e estoirámos as duas numa risada tão boa que acho que estamos perdoadas de pecados vários até à sétima geração. O mesmo não pensará a senhora que ia e vinha de tirar e guardar as hóstias, pois prostrou-se diante de nós, a anca toda para um dos lados, a mastigar a hóstia como se fosse um cowboy a mascar tabaco. Não a tememos. No fundo, e apesar de não abençoadas com o santo pão, talvez fôssemos das almas mais puras que ali se encontravam. 

Talvez.


08/11/2025

A minha casa está cheia de saudades

Andam pelas paredes, arrastam-se no chão e no tecto, uivam quando abro uma janela, e quando a fecho, transbordam por qualquer frincha que haja, por baixo da porta da rua, rodopiando de tristeza no quarto dele, dando murros no lugar dele à mesa, estão os mesmos lençóis na cama, não me atrevo a tirá-los de lá, a argola do guardanapo abandonada e vazia, o cheiro dele nas almofadas, o abraço dele em lado nenhum, anda a gata aos gritos pela casa, “Gonçalo! Gonçalo!”, vê uma mala de viagem e fica de sentinela, depois a mala desaparece, como desapareceram as dele há um mês, e não arreda do local onde a mala esteve, até que desiste e vai miar-lhe o nome para a cama, adormece comprimida de desilusão e falta, eu engulo um rio de lágrimas, que as saudades não me deixam em paz.
(Outro dia, arranhou-me os braços, nunca tinha sido assim atacada por um animal, há de pensar que lho escondi, quem me dera ter sido isso, pelo menos as saudades já não abarrotavam a minha casa. Mas ele também não estaria tão feliz e tenho que lidar com isso, foi para o que o preparei, despreparando-me.)
Vemo-nos no Natal. Isso é daqui a quantos meses?

05/11/2025

... vieste tu, feiticeira, inundar-me de vida...

[Gosto tanto desta melodia, que roubei um bocadinho para ficar com este título.]


Sempre tive a sensação de morar aqui neste planeta só por acaso, que bem podia ter ido parar a outro de outra cor, mas o diabo que me carregou perdeu as forças e lá vim eu em espirais muito horizontais e verticais parar ao azul. Ora nem mais, e, por isso, com a certeza de que nada é por acaso, todas as datas a coincidirem com outras datas anteriores e importantes (conheço uma multidão de gente que faz anos no mesmo dia que eu, a começar por dois tios gémeos — um do outro, não de mim — a quem, aos trinta e três anos, brindei com a minha aparição. Foi em Lisboa, calma.)

Existem coisas e acontecimentos na minha vida que já sei de antemão que vão acontecer, não por ter dons de bruxa (tomara eu!), mas porque sei medir a febre às coisas. Se entrar numa sala cheia de gente, sou capaz de perceber que energias é que ali se propagam. Se acabar de conhecer uma pessoa, sei logo quem ela é hoje e quem vai ser no meu futuro, em o tendo. É a linguagem verbal, os olhos, os tiques, os movimentos do corpo. E depois, uma série de factores externos, como a possibilidade, ou não, de a reencontrar. 

Não acredito que acabei de escrever isto. 

Mas existem "coisas" que mais não são do que os sinais que a vida nos dá. Ou sabemos lê-los, ou não. 

Esta noite choveram gatos e cães, como dizem os ingleses. Raios e coriscos, Capitão Haddock. Canivetes ou picaretas, como diz o povo. Chuva e trovões, coisa para lavar de vez a atmosfera. Graças ao nosso bom Deus, todos estes fenómenos se dão de noite, porque, de dia, tínhamos muita histérica aos berros, Acudam, que eu não sei nadar!, ou Deixem-me morrer, salvem o meu miau. Fala-se de três e meia da manhã, eu dei por isso às quatro e quarenta e quatro, não houve força anímica para ir ver o espectáculo de Ano Novo antecipado, nem procurar as gatas, virei a franga e toca a continuar, que a noite já não era uma criança. Por estas e por outras, só acordei às dez da madrugada, e tinha no telemóvel a mensagem de uma das crianças a dar-me conta da chegada de uma encomenda e respectivo pin. Respondi-lhe: "O homem vai apanhar-me no banho". Sou tão rápida a lavar-me, não sei se me esqueço de partes, se sou mesmo muito pequenina com um metro e sessenta e oito, ou se já tenho uma prática tão grande, que aquilo é zupa, zupa, zupa e está feito. Resolvi, então, arriscar. Estou a meio do banho, triiiim, a campainha lá de baixo, que nos dá para aí cinco segundos para responder, caso contrário dá-nos como ausentes. Corri descalça e molhada pelo soalho de carvalho (:P) afora, escorreguei contra duas ou três paredes, mas ainda consegui chegar a tempo. Era a carteira, sou uma tipa cheia de sorte. Se fosse um entregador homem, estaria num pequeno sarilho, pois não tinha tempo para vestir um vestido. Equacionei uma tanga — não literalmente —, voltava a vestir o pijama e metia só a cabeça de fora, dizendo que estava com uma gripe assassina e gemendo o código. Assim, atendi-a de lençol à volta do corpo, dizendo: "Que sorte a sua, apanhou-me mesmo a meio do banho". A seca murmurou "Hum", ainda achei que poderia assustá-la com a história da gripe, ou subia a parada para ébola, mas desisti, dado o meu aspecto de bruxa. Só queria fechar a porta e assim fiz. 

Yo no creo en brujas, pero que las hay, las hay.


07/10/2025

A pagadora de promessas

Findas que estavam umas mini-férias (na verdade, são todas mini, até as que duram meses, se é que isso existe) com a minha primogénita, escapadela que damos desde há quatro anos, fomos proceder ao check-out. Pedimos cartões para o comboio de acesso à praia e um lugar no estacionamento mais perto do cais, para que pudéssemos gozar mais meio dia de praia. Já tínhamos estacionado quando a criança me lembrou que eu deixara o almoço no apartamento. Por uma vez, não queríamos demorar no processo de ir a um dos restaurantes dali, pois tínhamos o tempo contado para fazer a viagem ainda de dia. Eu ai, que me esqueci no frigorífico, ela, ai, não faz mal, eu vou lá. Palmilhou dali até à recepção (muitos metros), da recepção ao apartamento (mais muitos metros), do apartamento à recepção (ainda mais muitos metros), da recepção até mim (tanto metro percorrido por causa da cabeça de ervilha da progenitora).

Íamos nós até um bocadinho lampeiras por aí afora no comboio, quando eu olho para o escancarado saco dela e vejo o cartão a resvalar, ou melhor, a derramar como água para a areia que envolve a zona dos carris. Ainda estava toldada por aquela sensação de estar em dívida para com minha petiza. Pus-me então em pé e gritei: “Motorista!”, que era para o homem puxar do freio. Repeti e ele nada. Hei-de experimentar “comandante”, ou “vossa altiveza” quando lá voltar. Achei prudente não me atirar do comboio abaixo, não fosse aquilo agarrar-me pelos pés e cortar-me as unhas para lá do sabugo, ou assim. E a máquina avançava, avançava. Lembrei-me então que, pelo meio do caminho, aí a uns setecentos metros da partida, ela teria que parar, para dar passagem à do sentido contrário. E parou. E eu pulei do comboio e descalcei as chanatas. Então, desatei a correr pelo cimento e pedras com bolinhas até ao sítio onde poderia estar o cartão. Não estava, mas vislumbrei um varredor de areia ao fundo, corri para ele, estanhado, mil dentes — ou mil falhas? — “Ah, é você?”, a querer conversa parva, só lhe disse: “Saudinha” e zás, de volta. O meu vestido de flores e folhos, um jardim em movimento, os meus cabelos ondulados cheios de vida, palavra que nunca me custou tão pouco correr mais mil e trezentos metros. Sentia-me etérea e potente, capaz de todos os meus impossíveis. Provavelmente, alguém viu apenas uma idosa desvairada, descalça num pavimento inacreditável, eventualmente a ter um surto em bom. Eu vi o mar, mergulhei por necessidade animal e garanto que, se nesse dia não me nasceram guelras, então também já não vão nascer nunca.