05/11/2025

... vieste tu, feiticeira, inundar-me de vida...

[Gosto tanto desta melodia, que roubei um bocadinho para ficar com este título.]


Sempre tive a sensação de morar aqui neste planeta só por acaso, que bem podia ter ido parar a outro de outra cor, mas o diabo que me carregou perdeu as forças e lá vim eu em espirais muito horizontais e verticais parar ao azul. Ora nem mais, e, por isso, com a certeza de que nada é por acaso, todas as datas a coincidirem com outras datas anteriores e importantes (conheço uma multidão de gente que faz anos no mesmo dia que eu, a começar por dois tios gémeos — um do outro, não de mim — a quem, aos trinta e três anos, brindei com a minha aparição. Foi em Lisboa, calma.)

Existem coisas e acontecimentos na minha vida que já sei de antemão que vão acontecer, não por ter dons de bruxa (tomara eu!), mas porque sei medir a febre às coisas. Se entrar numa sala cheia de gente, sou capaz de perceber que energias é que ali se propagam. Se acabar de conhecer uma pessoa, sei logo quem ela é hoje e quem vai ser no meu futuro, em o tendo. É a linguagem verbal, os olhos, os tiques, os movimentos do corpo. E depois, uma série de factores externos, como a possibilidade, ou não, de a reencontrar. 

Não acredito que acabei de escrever isto. 

Mas existem "coisas" que mais não são do que os sinais que a vida nos dá. Ou sabemos lê-los, ou não. 

Esta noite choveram gatos e cães, como dizem os ingleses. Raios e coriscos, Capitão Haddock. Canivetes ou picaretas, como diz o povo. Chuva e trovões, coisa para lavar de vez a atmosfera. Graças ao nosso bom Deus, todos estes fenómenos se dão de noite, porque, de dia, tínhamos muita histérica aos berros, Acudam, que eu não sei nadar!, ou Deixem-me morrer, salvem o meu miau. Fala-se de três e meia da manhã, eu dei por isso às quatro e quarenta e quatro, não houve força anímica para ir ver o espectáculo de Ano Novo antecipado, nem procurar as gatas, virei a franga e toca a continuar, que a noite já não era uma criança. Por estas e por outras, só acordei às dez da madrugada, e tinha no telemóvel a mensagem de uma das crianças a dar-me conta da chegada de uma encomenda e respectivo pin. Respondi-lhe: "O homem vai apanhar-me no banho". Sou tão rápida a lavar-me, não sei se me esqueço de partes, se sou mesmo muito pequenina com um metro e sessenta e oito, ou se já tenho uma prática tão grande, que aquilo é zupa, zupa, zupa e está feito. Resolvi, então, arriscar. Estou a meio do banho, triiiim, a campainha lá de baixo, que nos dá para aí cinco segundos para responder, caso contrário dá-nos como ausentes. Corri descalça e molhada pelo soalho de carvalho (:P) afora, escorreguei contra duas ou três paredes, mas ainda consegui chegar a tempo. Era a carteira, sou uma tipa cheia de sorte. Se fosse um entregador homem, estaria num pequeno sarilho, pois não tinha tempo para vestir um vestido. Equacionei uma tanga — não literalmente —, voltava a vestir o pijama e metia só a cabeça de fora, dizendo que estava com uma gripe assassina e gemendo o código. Assim, atendi-a de lençol à volta do corpo, dizendo: "Que sorte a sua, apanhou-me mesmo a meio do banho". A seca murmurou "Hum", ainda achei que poderia assustá-la com a história da gripe, ou subia a parada para ébola, mas desisti, dado o meu aspecto de bruxa. Só queria fechar a porta e assim fiz. 

Yo no creo en brujas, pero que las hay, las hay.


07/10/2025

A pagadora de promessas

Findas que estavam umas mini-férias (na verdade, são todas mini, até as que duram meses, se é que isso existe) com a minha primogénita, escapadela que damos desde há quatro anos, fomos proceder ao check-out. Pedimos cartões para o comboio de acesso à praia e um lugar no estacionamento mais perto do cais, para que pudéssemos gozar mais meio dia de praia. Já tínhamos estacionado quando a criança me lembrou que eu deixara o almoço no apartamento. Por uma vez, não queríamos demorar no processo de ir a um dos restaurantes dali, pois tínhamos o tempo contado para fazer a viagem ainda de dia. Eu ai, que me esqueci no frigorífico, ela, ai, não faz mal, eu vou lá. Palmilhou dali até à recepção (muitos metros), da recepção ao apartamento (mais muitos metros), do apartamento à recepção (ainda mais muitos metros), da recepção até mim (tanto metro percorrido por causa da cabeça de ervilha da progenitora).

Íamos nós até um bocadinho lampeiras por aí afora no comboio, quando eu olho para o escancarado saco dela e vejo o cartão a resvalar, ou melhor, a derramar como água para a areia que envolve a zona dos carris. Ainda estava toldada por aquela sensação de estar em dívida para com minha petiza. Pus-me então em pé e gritei: “Motorista!”, que era para o homem puxar do freio. Repeti e ele nada. Hei-de experimentar “comandante”, ou “vossa altiveza” quando lá voltar. Achei prudente não me atirar do comboio abaixo, não fosse aquilo agarrar-me pelos pés e cortar-me as unhas para lá do sabugo, ou assim. E a máquina avançava, avançava. Lembrei-me então que, pelo meio do caminho, aí a uns setecentos metros da partida, ela teria que parar, para dar passagem à do sentido contrário. E parou. E eu pulei do comboio e descalcei as chanatas. Então, desatei a correr pelo cimento e pedras com bolinhas até ao sítio onde poderia estar o cartão. Não estava, mas vislumbrei um varredor de areia ao fundo, corri para ele, estanhado, mil dentes — ou mil falhas? — “Ah, é você?”, a querer conversa parva, só lhe disse: “Saudinha” e zás, de volta. O meu vestido de flores e folhos, um jardim em movimento, os meus cabelos ondulados cheios de vida, palavra que nunca me custou tão pouco correr mais mil e trezentos metros. Sentia-me etérea e potente, capaz de todos os meus impossíveis. Provavelmente, alguém viu apenas uma idosa desvairada, descalça num pavimento inacreditável, eventualmente a ter um surto em bom. Eu vi o mar, mergulhei por necessidade animal e garanto que, se nesse dia não me nasceram guelras, então também já não vão nascer nunca.


30/09/2025

Remada alta

Agora meti-me noutras actividades no ginásio, não porque me tenha fartado de dançar, mas por não ter outro remédio: uma das instrutoras engravidou, outro envelheceu. Ela ainda pulou e saltou até aos quatro meses, depois ganhou juízo. Ele começou a fazer coreografias só com os braços, para isso sento-me numa cadeira em casa, exercito-me assim e não pago nada. Claro que não desisti da dança, mas fiquei confinada a um dia por semana e eu queria mais um bocadinho, se não se importam. A piscina está fora de cogitação, porque, embora tenha o fato-de-banho mais bonito do planeta e uma touca estupendaça especial cabelos compridos, só a parafernália que uma pessoa carrega para essas aulas, já me cansa a beleza. 

Comecei então a fazer Aeróbica, onde, apesar de ser a pior aluna da sala, o instrutor acredita imenso em mim, acha que tenho potencial. Mas eu, ao fim de duas piruetas, já não sei para que lado é oeste, quanto mais onde está o espelho. E ele dá-me coragem e incentivo para continuar, mas acho que, interiormente, está a divertir-se à doida. 

Continuei com o meu Stretching e experimentei algo que dá pelo nome de Dumbbels, que mais não é do que uma tortura macaca que já pratiquei noutro ginásio sob a designação de Body Pump. Aquilo, a pessoa entra já nervosa porque sabe que vai sofrer. O instrutor (já fiz com quatro diferentes) diz que “vamos trabalhar todos os grupos musculares”. Ahahahahaha. Vamos triturar tudo o que não seja osso nem banha e, de caminho, somos voluntariamente sujeitos a todo o tipo de sofrência. Parece a tropa. Alteres, remada alta, agora nove repetições, agora outras nove, agora fica lá em cima, faz flexões em dois-dois, três-um, agacha e fica, insiste oito lá em baixo, agora mais oito, vamos aos lunges, põe um pé à frente e outro atrás e desce até tocar com o joelho no chão, insiste e pára lá em baixo, agora vamos só aos abdominais e está feito, em dois-dois, em cruzado com a perna esticada sem bater no chão. Camelo. Apetece-me assassinar o instrutor daquele dia, mas depois vem uma sensação tão, excuse my potuguese, porra, gosto desta porrada, que volto.


22/09/2025

My new me

Presa por um dos meus trabalhos, que anseio por que surjam e, quando acontece, entro em parafuso, acho que prego martelado e torto, ai porque não tenho tempo, ai, porque o prazo é sempre espartano, ai como é que atendo à casa, cada vez mais pequena, ou, deve ser isso, cada vez mais vazia, sempre me convenci que as casas aumentavam de tamanho quando saía uma pessoa, afinal encolhem, sai um e leva o quarto, a cadeira à mesa, os alimentos do frigorífico, as tralhas e ele mesmo, a gente a ver as paredes avançarem para nós por encolhimento do lar, não sei explicar isto muito bem, mas há um fenómeno arquitectónico quando um vai embora. Podemos falar alto, andar em pêlo pela casa, mas que vantagens tem isso, se não uso nem quero nenhuma das duas? A televisão só nossa, esta sou eu, a ver televisão. 

Faço uma pequena pausa para ir almoçar, primeiro tenho que dar dois ou três suspiros de alívio, de cansaço e de desânimo, é um trabalho duro, podiam até pagar-me o meu peso (não quero falar sobre isso, a comprimidagem ofereceu-me um corpo que eu não reconheço lá muito bem) em ouro, que seria sempre mal pago. Suga-me as energias, a alegria e a vontade de me mexer, nem que seja para assoar um espirro. Vou a levantar-me da cadeira que me assa e recose e frita e salteia e estufa o rabo, e leio no canto do computador a hora, três minutos para a uma, e o dia, dezoito. De repente, acende-se um fósforo na minha memória, "dia dezoito é dia de consulta", a minha agenda são consultas, e só me dou tempo de passar das calças de ganga e t-shirt cinzenta para um vestido de cetim (ainda bem que não agarrei nenhum de lantejoulas. Ah, já sei, não tenho nenhum) e sair a voar para o consultório. Estou sem tempo, estou sem carro, estou sem almoço, mas avanço, o consultório fica a trezentos metros da minha casa, o que é um aborrecimento de saltos altos. A médica atrasa-se sempre, eu sou a primeira da lista, devia ir a assobiar e a colher flores. Em vez disso, chego oito minutos depois das treze, sento-me a respirar fundo e a readquirir-me, alinhada, concentrada no que vou dizer. Ajeito as fitas das sandálias que, entretanto, entraram em roda livre, limpo o lipgloss que tinha posto, já me está a enervar os lábios e evito o contacto visual com a funcionária do balcão, que tem dois capachos, em vez de pestanas. A médica chega praticamente às duas. Gosto daquela médica. Ouve-me, e, conforme eu vou relatando as minhas coisinhas, ergue as sobrancelhas, junta-as, carregando o olhar, descai o pescoço com a boca em linha, ou então ri-se com gosto, a ponto de ficar descontrolada e eu ter que esperar que lhe passe.