18/12/2024

Eu tenho problemas com tudo # 39

Tinha um exame médico para fazer, para o qual, segundo a funcionária que me atendeu, devia ir com o intestino limpo, uma vez que, dessa forma, a senhora doutora vê melhor as imagens, sem nada que impeça. Perguntei: Blocos, calhaus?, rimos muito e desligámos. O exame não é intestinal nem estomacal, esta da tripa limpa é novidade, mas quero lá saber, façam-me o raio do coiso e não nos aborreçamos mutuamente.

Entro na farmácia, que frequento muito mais vezes do que gostaria, mas também é, e talvez por isso, um terreno meu, onde me sinto completamente em casa, verifico que estão quatro pessoas acercadas do balcão, duas são casal e já estão a ir-se embora, uma outra está a ser atendida e, num dos extremos, um senhor de idade, aparentemente à espera de alguém, enrolando em tubo um calendário de parede. Sou atendida na ponta oposta do balcão e digo a Jorge, pelo canto da boca: “Microlax, se faz favor”. Ele, exactamente da mesma forma, confirma: “Microlax?”. E eu, no mesmo tom: “Microlax. É que vou fazer um exame e tenho que levar os canos desentupidos, não sei porquê”. 

Nisto, o senhor que enrolava o calendário intromete-se no assunto e pergunta, alto e em excelente som, de modo a que se ouça, pelo menos, até à porta: “A senhora vai fazer um exame ao cocó?”. 

Considero que tenho muita sorte em ter um superpoder de improviso, encaixe, humor e abstracção, nomeadamente para o inesperado e o non sense. Primeiro gargalhei e imediatamente respondi, no mesmo tom: “Não senhor, não vou fazer um exame ao cocó”. Ana Teresa, aflitíssima, socorreu-me assim: “É para o teu filho mais novo, não é?”. “Não, é para o meu cão que, coitado, é muito preso. Não sei se é da trela ou das grades na janela”.


17/12/2024

Desculpa nunca ser Inverno

Não haverá Natal em que eu viva, que não rume à minha Sandra para, numa tentativa muito tosca, desajeitada e débil, tentar por mais e mais uma vez agradecer-lhe, faz agora três anos, ter-me rapado o cabelo, deixando para trás a família e abrindo o cabeleireiro só para mim. Foi no dia 26 de Dezembro.

Vou e ofereço muito menos do que ela merece, naquele dia um anjo da guarda recortado numa medalha de ouro, depois bijuterias com o significado que lhe quero dar, este ano uns brincos com a pedra do azul mais bonito, turquesa, pedra do signo dela do zodíaco, dizem os astros, e cujo significado os homens entendidos lhe deram como sendo “saúde”. 

Apareço sem avisar, embrulhinho cor-de-rosa na mão, digo uma tontice acerca do Pai Natal e abraçamo-nos apertado, dos olhos dela caem lágrimas iguais às daquele dia, sem som nem eco, depositam-se no meu cabelo comprido que as absorve; os meus, secos, nem um soluço, não tenho solução: hei-de ser sempre a mesma bruta, só comigo sou incapaz de me comover, tenho pavor da autocomiseração e a comiseração sufoca-me, sem dó. 

Também foi assim no dia 26 de Dezembro, há três anos.


15/11/2024

L’enfer

Existe qualquer elemento na estação de Correios da área da minha residência — pode ser o ar que lá se respira, misto de cartão, electricidade e cabelos —, que me transforma num monstro. É raríssima a vez que lá vou, não por vergonha da cena anterior, mas por saber que me vou irritar, abrir as goelas e partir a loiça toda (não literalmente, já que ali praticamente nada é de porcelana). (Há uma mulher assim no Continente, mas essa é maluca.)

Um destes dias, quis o Cão que eu tivesse ido lá deixar um envelope do meu microscópico negócio on-line. Entrei, entreguei, paguei e sumi-me. Nem parecia eu. Passada uma semana, a destinatária avisou-me que a pequena encomenda ainda não chegara. Pedi-lhe que esperássemos mais uma semana, e assim fizemos. O pacote (olarilolé, olarilolé, bailar assim sabe tão bem) não chegou, cá me meti na chanata e ala para a estação. Lá chegada, verifico que tenho cerca de vinte pessoas à frente e aquele odor a Correios tomou conta do meu nariz, das minhas unhas, dos meus dentes, dos meus cotovelos, mãos e pés. Chega uma chica, pergunta a Paula, aquela funcionária com quem já me alterquei milhares de biliões de vezes, se pode fazer só uma perguntinha, e fica lá. Ao cabo de cinco minutos, avisei a que estava ao meu lado, já divertidíssima com os meus comentários, que ia largar a bomboca, para depois ficar a ver o circo a arder. Perguntei então de que tamanho era a pergunta da freguesa, tão demorada, que me respondeu que tinha ali hora marcada. Ia falecendo a rir com a resposta absurda da criatura, mas o resto do povo ficou a pontos de linchar a mulher, que nem oportunidade de argumentar com ela me deu. Cambada de chatos, nunca dizem nada, tem sempre que ser aqui a pioneira que toma as rédeas de tudo (eu nessa casa, tudo eu). 

A funcionária que me atendeu disse que eu podia escrever uma queixa no portal lá deles. 

Para me responderem o mesmo que a senhora me está a dizer?

Sim.

Ah, penso que vou declinar.

Hoje a que me fez a encomenda comunicou-me que a recebeu, vinte e três dias depois da expedição. Esteve sem saber da chave da caixa do correio uma semana e meia (ou terão sido duas e meia?). Apetece-me fazer agressivo uso das minhas unhas, dos meus dentes, dos meus cotovelos, mãos e pés.


06/11/2024

A gata e ele

O meu menino azul, de olhos copiados do meu pai —, mas grandes, grandes —, que me olham, agora já só de vez em quando com aquela luz de deslumbramento que era plena quando no berço, começou há um par de anos a sacudir as peninhas e a abri-las em ensaio de voo, coisa que percebo pela maior escassez dos abraços primeiros, que vinham sempre depois das minhas tempestades. Disse um dia, há muitos meses, que queria ir de Erasmus, e eu atónita, como se ele ainda estivesse dependente da minha opinião, autorização ou dores muito maiores, perguntei, nunca saberei se a brincar: “A mamã pode ir contigo?”. Também nunca saberei, talvez nem ele, da seriedade da resposta: “Podes.” 

“A gata vai morrer de saudades tuas.”

Agora prepara afincadamente a candidatura para um mestrado longe de mim o suficiente para que não possa amparar-lhe alguma queda, pois imagino que sente as asas fortes e a desnecessidade das minhas mãos. Longe de casa, longe da gata. Há pouco avisou-me que vai para ficar, porque aqui não há nada.

Deita-se na cama, acabado de chegar do treino, a gata corre-lhe para cima do peito, ele afaga-lhe o dorso e ela fica num transe amoroso, a olhá-lo nos olhos, enquanto ronrona. É a imagem dele, pequenino, deitado sobre mim em êxtase perante a perfeição que já perdi. Diz ele exactamente o que penso naquele instante: “Não sei o que será desta gata quando eu me for embora.”

A gata vai morrer de saudades dele.