Olá, esta sou eu a cultivar-me.
Chego à Mãe d’Água (nome mais bonito, recuso-me a chamar-lhe reservatório) para ver uma exposição sobre o Egipto, embora estivesse lá escrito “Egito”. Ou era “Egipo”? Ou “Epigo”? Olhem, não sei. Fui. Ainda proibida de ir à praia, um domingo assaz ventoso, peguei em dois familiares e aqui vai dela. Lá chegados, somos informados na bilheteira de que cada entrada (plateia em pé, porque sentados era um preço que eu esqueci imediatamente) custa doze paus, mas que, se fizermos prova de sermos moradores em Lisboa, passa milagrosamente para dez. Acho isto uma xenofobia interna, mas siga. Fiquei tão nervosa que só me apeteceu dizer com sutak dos Açores, “Atã num se vê lóg que sumos de Lisbôa?”, mas contive-me porque, efectivamente, queria poupar seis dele. Fizemos a tal prova com as cartas de condução (donde se conclui que, quem não conduz, não entra), mas em que só uma delas (por ser mais recente) continha a morada. Porém, aquele meu ar afectado e possidoninho de revolta (a terceira em minuto e meio), denunciou a minha origem lisboeta e a senhora cedeu ao óbvio. Deslargados logo ali seis contos de réis, lá entrámos para aquela sala belíssima e sinistra que tem um lago ao meio, onde um segurança nos indicou o caminho para os melhores lugares (em pé, já referi?), que eram exactamente ao lado dele, mas que, para alcançarmos sem que ele tivesse que retirar uma fita amovível, teríamos que dar a volta completa à sala (vá lá que sem um mergulhinho pelo meio, à laia de brinde), que tem seguramente seiscentos e qualquer coisa metros quadrados. Eu cá liguei a lanterna do telemóvel, porque se há coisa que me dá angústia é andar às escuras em sítios que não conheço. Isso e cheiro a suor, mas já lá vamos. Chegámos ao local indicado — a zona dos lugares sentados cheia que nem um ovo, pois isto é povo que não pode pagar o arroz e o feijão, mas lá ficar em pé meia hora é que nem ponderar —, local aprazível, fresco, cheio de espaço e um varandim para a pessoa apoiar os cotovelos ou outra articulação qualquer, e eis que chega uma família de quatro elementos, era o pai, era a mãe, era a adolescente parva e a criança sossegada, e, num espaço de vinte e cinco metros de comprimento, todo ele disponível, em quem é que a tonta vem encostar-se? Adivinharam. (Covid, aquele vírus maroto, jamais será vencido.) A exposição começou, a catraia sentou-se na varanda, de costas para as imagens, e eu desejei com ardor que ela submergisse nas águas da Mãe d’. O pai da dita considerou, com certeza, que nós éramos uns privilegiados em termos de localização, porque foi colocar-se exactamente atrás de mim. Lembro que tínhamos à disposição uma parede com vinte e cinco metros para nos colocarmos (para além das outras três com mais vinte e cinco metros cada uma) e que foram vendidos, ao todo, treze bilhetes da modalidade em pé. Lembro ainda que Covid.
Tinham-nos fornecido à entrada uns headphones com uma caixinha, para ouvirmos a explicação das imagens projectadas na parede, ao som da voz de Ricardo Carriço, dramatiquíssimo, olhem, até tive medo cada vez que ele dizia Tutankamon. Também foi o único nome que fixei, uma vez que já o conhecia.
Do lado de lá da fita de segurança, mesmo ao meu lado, instalaram uma família que chegou atrasada, constituída por pai, mãe e bebé. Arranjaram-lhes cadeiras, eles sentaram-se, tiraram o bebé do marsúpio e deitaram-no no chão de pedra. Cheiravam tanto a suor que tive oportunidade de ver a exposição em quatro dimensões.
Não sei se recomendo, vou pensar. Sei que vou passar a ir cultivar-me para outras paragens, nem que seja numa alfaia agrícola.