26/12/2022

O homem de cristal

Foi neste dia, num ano que não queria que a História rezasse, que disse adeus ao meu cabelo e nunca mais o vi. O que me nasceu depois já não é nem nunca será aquele, e cristalizei naquele momento, naquele lugar, naquele fim que me aconteceu logo a seguir ao Natal.

Estive um ano a meter-me pelo opaco das sombras, fugida como uma criminosa das caras conhecidas, vizinhos, comerciantes das minhas ruas, anónimos que se cruzaram nos meus passos durante quase três décadas, apavorada da piedade, do coitada, das palavras vãs ou dos silêncios constrangidos, na pesquisa minuciosa por sintomas à vista. O Senhor António da mercearia entrou neste rol, era demasiado habituado ao meu espavento de chegar em modo ciclone, arrebanhar dióspiros, tângeras, batata doce cor-de-laranja e uvas pretas fora de época, excessivas especificidades para um ser tão pacífico e quieto, até nos tornámos cúmplices quando descobrimos que sobrevivemos ambos à meningite, ele guarda até hoje a memória das intoleráveis dores de cabeça, eu já não, pois ela apanhou-me na semana do meu primeiro aniversário. 

Ganhei agora coragem e voltei lá, pedi quatro dióspiros daqueles que se rebentam no caminho para casa, ele acomodou-mos muito bem numa caixa para bolos, cristalizado assim que entrei na lojita dele, os braços caídos até ao chão, as costas numa curva descendente, o cabelo ainda mais branco, “Ai, Senhor António, depois da meningite ainda consegui uma destas”, e ele com os olhos de cristal, “Vai correr tudo bem”. Tive que sair a correr com os meus dióspiros a rebentar pelas costuras, não quis ouvir mais clichês, não quis que o homem descristalizasse de repente, achei que assim como estava, estava muito bem.

Também eu cristalizei naquele dia a seguir ao Natal, Senhor António. Também eu quebro quando caio.