Ando cá a matutar em escrever um manual de instruções — porque sinto que não tenho estudos para publicar um livro — sobre “Como lidar com alguém que tem cancro”. A ideia é um bocado alcançar o Pulitzer, o Nobel, ganhar uns cêntimos, mas, essencialmente, ensinar o Outro, espalhando a palavra. Já o alinhavei e tenho, assim sendo, alguns vectores:
1. Não ignores, nem a doença nem o doente. Não finjas que não o vês (oh, como seria bom adquirir o dom da invisibilidade, mas não por essa via), não evites falar-lhe no assunto, não fujas. Se não tens nada para dizer, pergunta apenas: “Como é que estás?”. Simples, assim;
2. Não tenhas medo das palavras. Podes dizer “cancro” à frente de uma pessoa com cancro. “Um problema”, “a doença”, “isso que tens” são eufemismos. Mete-os no coiso, agora não me lembro do nome. Cancro, está bem?
3. Não digas “Estou aqui para o que precisares” quando não estás. Ninguém espera que sejas mais nem melhor do que és, prometer o irrealizável é só um desperdício de saliva, agravado se for escrito nas redes sociais, para o povaréu ver e se comover com tamanha bondade;
4. Não massacres com as tuas pequenas maleitas, olímpicas diarreias e sintomas de covid. Uma pessoa com cancro está-se completamente cagando para as tuas desinterias sazonais ou porque abusaste dos enchidos;
5. Abraça. Dá a mão. Faz uma festa na cara. Aperta as duas mãos. Olha dentro dos olhos. Evita os clichés, “Vai correr tudo bem”. Isso não tem qualquer base científica e a pessoa que está doente sabe. Pode correr e pode não. Mas abraça sempre e nunca com segundas intenções. Percebe que a libido de um doente de cancro é muito semelhante à de um calhau. Não. Lhe. Apetece. Pinar;
6. Não exageres na simpatia. A condescendência, a súbita cortesia quando foste uma besta até agora, a compreensão desmedida, cheiram a piedade e a piedade cheira mal. Age normalmente, sem demasiados “Estás tão linda”. Ninguém se sente tão linda quando carrega consigo uma doença que mata e cujos tratamentos a desfiguram;
7. Não dês espaço sem que a pessoa te peça. Dar espaço é desaparecer. Cómodo para quem salta fora, demolidor para quem fica, doente e só;
8. Deixa a pessoa respirar. É ela que acorda e se deita todos os dias com o monstro escuro. Para onde quer que se vire tem-no na sombra. Sobrecarregá-la com mais inputs é tão inútil quanto cruel;
9. Não desvalorizes. Há quem se ria do seu próprio cancro, há quem chore rios e oceanos, há quem se mantenha à tona, mas todos, sem excepção, têm uma pistola apontada à cabeça para o resto da vida, e, para viver assim, nem todos têm tomates;
10. Se não puderes fazer nada disto, vai ver se está a chover.