As minhas sextas-feiras são todas 13

Acho que já não é a primeira vez que ponho este título num post. Ou então, foi noutra encarnação. (Quando eu era galinha e escrevia soberbamente, como um rouxinol.) (Sou uma poetisa perdida, inacabada e desperdiçada.) (Um dia serei descoberta, como o caminho marítimo, e esmagada por homenagens póstumas e chatérrimas, já as minhas cinzas terão passado o almofariz da última penitência.)
(Que lúgubre.)
Hoje não acordei assim. 
Mas é verdade que se dá um fenómeno qualquer às sextas da minha vida, que nunca são casual friday, nem yey weekend. Parece que já acordo de mona e com a mosca (em cima da mona). 
Sempre gostei mais das quintas-feiras, mesmo quando andava na escola, e ainda que me calhasse um horário escravizante (como são todos naquelas idades, incluindo os dos dias em que se juntam educação física com trabalhos manuais com desenho) (ai já não há disso? Mas havia, chiu.), dizia eu antes de me perder na frase, que as quintas é que é, a véspera da véspera, o falta pouco, o ainda não cheguei ao rabo do gato. 
Então olhem, como singra e sangra a falta de assunto, e eu também tenho as panelas ao lume e a roupa a corar ao sol aqui na casa da pradaria, deixo-vos com uma melodia que hoje me canta cá na tal mona, pois é a que acompanha os alongamentos nas aulas de dança, e eu considero muitá fixe, e honi soit. 
Boas sextas para todos. E boas sestas igualmente, que quem me dera a mim. 


30/03/2017

Vai ser tão blogger da minha parte

Como toda a blogger que se preze*, inscrevi-me numa corrida. É claro e transparente, além de cor-de-rosa, que não vou correr-correr, pois que essa tarefa está reservada às bloggers-bloggers, e eu sou assim mais mais-ou-menos.
Já fui lá a correr, passe o pleonasmo, buscar o meu kit e, efectivamente, pagar a inscrição. Quero dizer, fui a andar, pelo menos desde o metro até ao recinto. Isto, numa de ir treinando. É que não sei se já disse, mas vou caminhar, quais correr. Penso que é do domínio público que eu detesto correr, por isso só me resta a versão do percurso em caminhada, eu e as 9999 outras Micas todas. Além disso, e como a vida é feita de opções, entre ser a mais velha de toda a corrida e a mais nova de toda a caminhada, mon coeur n'a pas balancé, e optei. 
Como tenho muito com que me ocupar, deixei a inscrição para a última da hora, pelo que a possibilidade de o fazer online já estava cancelada quando tentei. Por essa razão, paguei também o preço mais alto para poder participar, o que é sempre pouco para a causa a que se destina: mamas. 
Quem tem mamas tem medo. E isto não é uma piada. 
Bonito e cor-de-rosa o momento em que a menina chamou, de uma fila de trinta, "Inscrições de última hora!", e vá que fui a única que abandonou a fila, indecisa entre o ar compungido e o ufano. Assim, acerquei-me, tendo-se seguido a amável discussão acerca do tamanho da minha t-shirt. Andámos ali, não literalmente, entre o xs e o 12 anos, não porque eu seja pequena e magra, mas porque as t-shirts são grandiosas e mega. A diferença maior eram uns quatro centímetros na altura, por isso decidi trazer a de 12 anos, que eu quero lá saber se a t-shirt bate na virilha ou bate na cintura e sempre tenho oportunidade de voltar a sentir-me uma petiza por umas horas. 
Agora só falta programar convenientemente o matchi do outfit, que me cheira que vai ser o calção preto e rosa e o téni nos mesmos tons, depois suo-me toda na aula de aeróbica pré-caminhada e, no fim, tiro uma pic, mesmo à blogger, com aquele ar exaurido do povo que corre a sério, estafada e feliz para o retrato da posteridade.
(Escusam de me procurar lá no meio, pois seremos milhares, todas vestidas de igual.)
(Os homens também podem participar na caminhada, e há sempre uns grandes queridos que acompanham, e outros que correm no espaço reservado à caminhada — on fait le trottoir —, mas esses são os que levavam uma rasteira e não se falava mais nisso.)
Vá, a andar.


* Povo: tenho visto mais ou menos frequentemente por aí, escrito prese. Não. É que não existe. Nem o verbo prender tem um condicional tão mau. 

29/03/2017

And that awkward moment # 22

em que te diriges ao teu banco, cheia da segurança e da soberba, animada pela intenção de solicitares que te passem um pequeno pecúlio que amealhas há coisa de quatro anos para a conta à ordem, sentas-te do outro lado da mesa onde está o amigo bancário, todo sorrisos, cheio de cartazes "Aqui consigo", achas uma graça imensa à utilização do duplo sentido do termo consigo — pronome e verbo —, estendes o cartão, explicas sumariamente, já quase a palitar os dentes, que queres passar o porquinho mealheiro para o porta-moedas, e ele te diz, assim, a seco, Tem cá dez euros?
Dá-se-te o flash, reconsideras toda a tua vida, pensas em emigrar ali num instantinho, morre-te um pequeno sonho nas mãos, brotado da boca do bruto, ponderas regurgitar, autopunes-te (dizendo-te mentalmente "Em casa conversamos", já de chicotinho mental na mão) por saberes que, no processo daquela tua poupança, algo falhou, e sabes que foste tu (não terás assinado alguns papeis que o banco te mandou para casa...?), engoles litradas de saliva, antes de pedires, voz falsamente firme:
- Olhe, passe-mos para a ordem, não vá isso rebentar os cofres com o juro acumulado. 
Vai ele e passa-te 10,05 em euros, sendo que 0,05 correspondem ao tal juro. 
Cá agora perdi a pose. Ainda lamentei:
- Olhe que pena não ter posto antes 15 euros. Agora tinha um juro de 0,075, e estou para saber como é que o banco me dava meio cêntimo. 
Ele achou tanta piada que me estendeu um bacalhau. 

28/03/2017

Vencê-los pelo cansaço

Ligo para o apoio ao cliente, onde já me conhecem de ginjeira, mesmo não sendo eu de Óbidos. Tenho uma reclamação a fazer, como aliás acontece amiúde.
- Continente online, muito bom dia, fala o [Tiago, Ricardo, Daniel] [Silva, Sousa, Botas], em que posso ser útil?
- Bom dia, fala [Linda Blue]. É o seguinte: eu fiz uma encomenda online no dia 12, tinha um vale de 15% de desconto em cartão, com prazo para ser debitado entre o dia 13 e o dia 19, inseri o cupão no final da encomenda, fiz tudo bem, fechei a encomenda depois de escolher o horário de entrega e agora a encomenda não me chega a casa.

[clic.]

Volto a ligar, atende-me outro [Paulo, Miguel, Vítor] [Ferreira, Oliveira, Celeste].
- Bom dia, fala [Linda Blue]. Já disse ao seu colega ao que venho, mas acho que vou ter que repetir tudo.
- ...
- É o seguinte: eu fiz uma encomenda online no dia 12, tinha um vale de 15% de desconto em cartão, com prazo para ser debitado entre o dia 13 e o dia 19, inseri o cupão no final da encomenda, fiz tudo bem, fechei a encomenda depois de escolher o horário de entrega e agora a encomenda não me chega a casa. Ainda por cima, uma encomenda a ser feita a 12, com entrega a 13, e se o crédito só pode ser debitado a partir de 13, logo aí encontro-me numa desvantagem, tendo em conta que, se me fazem a entrega a 13, não posso ir a correr ao supermercado gastar o crédito logo a 13, ou seja, fico com menos um dia para gastar o meu crédito. De toda a maneira, vou gastá-lo até ao dia 19, assim ele me caia na conta, nem que seja em panos do pó, só que a questão agora nem é bem essa, é mesmo o facto de não só não ter a encomenda em casa como também, e aparentemente, os 15% ainda não constarem do meu cartão. Não me diga que me fizeram o que fizeram no Verão passado, que também tinha 15% em cartão, e depois o vosso sistema brecou à última da hora e eu vi-me e desejei-me para reaver o meu crédito, e digo reaver porque ele é meu. Foram telefonemas e mais telefonemas, acho que falei com os seus colegas todos, e consigo também, de certeza, que o seu nome não me é estranho, mas primeiro que mo creditassem foi um caso sério, até nem sei se chegaram a creditar, porque nem dei por ele nas minhas contas. É que eu gasto tanto, mas tanto, que já nem sei a quantas anda o meu saldo, até posso nem ter sido eu a gastá-lo, porque toda a minha família tem cartão, e anda sempre tudo a rapar de lá o saldo, antes que ele desapareça. Quer ver o que é que se passa, por favor? 
[Paulo, Miguel, Vítor] [Ferreira, Oliveira, Celeste] deve ter ido cortar os pulsos antes de me responder.
(Já me inseriram o saldo; já o gastei.) 

27/03/2017

O primeiro beijo de Rosinha, minha canoa

Ia eu nervosa e não segura, titubeante e periclitante, pois que me dirigia a um local onde já fui infeliz.
Sabem aquela que diz a milenar sabedoria chinesa, "Nunca voltes a um local onde foste muito feliz"? É em parecido, mas ao contrário.
Também já lá passei horas boas, boas horas. Mas aquele parque de estacionamento tira-me do sério e não me põe no risonho, simplesmente evoca-me uma vez que ali recebi uma má notícia, sentei a criança no carro, coloquei-me diante do volante e desfiz-me a mim mesma num choro irreprimível e irrepreensível. Isto de ser mulher é uma tragédia em infinitos actos, que só quem passa por elas é que coiso.
Assim, abordei o mesmo parque, tantos anos volvidos, apesar de tantas vezes que ali estive entre uma e esta outra, mas algo pode ter-me toldado a vista, o livre pensamento e as sinapses. Avistei um lugar disponível, apontei a frente de Rosinha — eu, que estaciono sempre de rabeta, à velho, como me ensinaram na escola — e trás, deu-se o ósculo bem dado, beijo mal furtado, frutificado com uma amolgadela na frente esquerda de minha canoa, riscos suaves no desgraçado que ali estava ao lado. 
Chorei. Uma mulher não é de ferro, nem seus nervos, menos ainda de aço, ainda que inoxidável. Pode chorar, que não enferruja. A mulher pode. 
(Estou fadada para os prantos naquele sítio.)
Contactada a dona da vítima daquele suave toque com tão trágicas consequências, assinada a declaração amigável (ficámos legalmente amigas), dizia ela, feliz proprietária de um carro riscado, é certo, mas também de um mega-telemóvel, ensombrando chico-smart que se me falece todos os dias um pouco nas mãos, à custa das sevícias a que o sujeito, que Cá dentro tenho "o talho"; Eu estou sempre no talho; Tenho câmaras no talho, e vejo tudo o que lá se passa por aqui. (E apontava para a máquina poderosa, que me encolhia a mim e a chico, não bastando a nossa minha humilhação pelo estrago operado nas viaturas, ainda de maquilhagem denunciadora do desgosto.) O pináculo atingiu-se no momento em que me perguntou se podia tirar uma fotografia à declaração assinada, e me vi no achincalho de ter que dizer assim: Eu tiro, mas não vai perceber-se nada, esta câmara está aos tremeliques, o telemóvel anda a querer avariar, e vai ela e responde o seguinte: Deixe estar, que eu digitalizo com o telemóvel. Pois, não percebi por que é que queria que eu fotografasse uma cena que ela podia digitalizar. (E, se calhar, amandar para o talho, também.)
Estou capaz de me fazer vegetariana, vegan, herbívora, ruminante, fundamentalista da erva.
Uma pessoa farta-se de ser assim.

26/03/2017

A hora mudou e eu

perdi a coragem para escrever. Perdi a vontade, morreu-me qualquer coisa na ponta dos dedos, algo no entusiasmo, tudo na alegria. Foi uma morte súbita, daquelas do coração, imprevista, chocante, um dia está tudo bem, no dia seguinte morreu de morte morrida. Impede-me de me impelir às palavras, desliga-me o ímpeto, esvai-me os assuntos. 
(Até tinha alguns, o do homem de Barcelos que matou 4+1, diz que este 1 é aborto, eu acho que não, mesmo não sendo fundamentalista pro-vida. Então aborto não é a interrupção voluntária de uma gravidez? Onde é que está ali a voluntariedade? Haveria muito a dizer sobre aquele caso, mas também deixou de me apetecer. Não percebo por que é que o pasquim de serviço ao sangue chama ao homem o Monstro de Barcelos, assim mesmo, com maiúsculas no substantivo que devia ser adjectivo. Pode ser alguma associação de ideias com o filme do momento. Bem triste, já agora. Não há Bela naquela história. Só senãos, nenhuma feição.)
(As gatas continuam a dar-se mal uma com a outra; cada vez que se juntam, há briga de gatos cá no lar; a Mia tem oito anos, a Molly tem um, uma não se dá ao respeito, a outra é tonta dos chifres e não sabe o que isso é.)
(O meu computador está farto de chuva. Está de greve de produtividade, trabalha ao ralenti.)
(Diz que Março é Inverno só de manhã. Só me apetece chorar.)
(E que Abril, águas... ai, por favor.)
(Hoje fiz uma aula de dança em que éramos só duas, com a titcha três, mas ela não conta. A outra era uma senhora de idade chamada Narcisa, mas sem vaidade nenhuma. Avisou logo que não sabia dançar, e era mesmo verdade. Tinha pestanas postiças e um eyeliner carregadíssimo, e mais nenhuma maquilhagem. Eu, de maquilhagem completa, saia de dança, a sala toda só para mim — e para ela, vá —, rodopiei como um nenúfar ao vento, feita parva. Ou um narciso, enfim. A meio da aula ocorreu-me que a Narcisa e eu fazíamos um pandã perfeito para uma aula da terceira idade. Mais valia irmos para a hidroginástica. Ou para o Pilates, que lá é que se gemem as dores das costas e dos joelhos e de sei lá mais de onde raio é que pode haver dores daquelas.)
(Eu desisti do Pilates há muitos meses. Toda a gente menos eu tinha uma espondi, uma artri, uma mazela qualquer, e isso fazia-me sentir expulsa da caixa.)
Como agora. 
Tantos assuntos da treta, tanta falta de ânimo para os transformar em coisas saborosas. (Eu sei que consigo, modéstia à parte. Narcisismos de lado.)
Parava de chover, e eu talvez ressuscitasse. 

23/03/2017

Se o estupor não quer desmoralizar-me mais, então não sei o que quererá em alternativa...


Portanto, para Mr. Blogger é possível que haja quatro comentários em dois posts meus de hoje, e zero visualizações em cada um deles. 
Portanto, para Mr. Blogger é possível quatro pessoas — se não contar com as minhas respostas — comentarem sem terem sequer aberto os posts. 
Está certo.
Cão. Vá-se catar.

Please don't go

A sério que se me foi outro seguidor? Quer dizer, uma pessoa anda nisto vai para quatro anos (só neste blog, pois que já não era virgem quando o iniciei), vem aqui diariamente espremer-se toda, vê-se aflita para arranjar fregueses, mais um ou menos um fazem-lhe toda a diferença, e ainda há quem se vá embora?
Granda lata.
Adeus. Só faz falta quem cá está.

Vou adoptar a verve das empregadas domésticas: 
Vou-me embora, minha senhora, não aguento mais.
Ninguém me paga para isto. (Ah, a tal sigla NMPPI!)
Estou cansada de ser injustiçada.
Eu também tenho os meus direitos.
Vou para onde me tratem bem.
Vou-me queixar ao sindicato.
Também serve a dos amantes enxofrados, que é praticamente igual:
Vou-me embora, não aguento mais.
O problema és tu, não sou eu.
Nem sequer foi bom enquanto durou.
Vou ser feliz para outro lado.
Vou partir para outra.
Tu não me mereces.

Ando mesmo a ponderar fazer um manifesto, ameaçar acabar com isto tudo, armar a puta como uma drama-queen, bater a porta com a máxima violência de que seja capaz, partir a loiça toda e também partir, literalmente, para nunca mais voltar, que isto assim também já chateia. 

Eu interajo com os peões

Estamos a alcançar, meu Rosinha e eu, uma passadeira de peões que se encontra com o sinal vermelho para eles, verde para nós dois. Está também a alcançar a dita uma adolescente cabisbaixa, atitude corporal safoda-caguei, headphones na tola, claramente sem pretender ligar ao sinal vermelho diante de si. Naquela de sou-o-peão-que-se-impõe-e-se-agiganta-tu-paras-para-eu-passar-eu-sou-forte-e-eterna, bem se vê que não viu imagens de Tiananmen. Nem apito, nem nada, impeço-a só de avançar no momento exacto, faço-lhe um gesto "Acorda", e a bruta faz-me um pirete, atravessando mesmo no vermelho, depois de Rosinha passar. 
(Eu não abri o vidro; eu não apitei; eu não devolvi a fineza.)

~
Estamos a alcançar, meu Rosinha e eu, uma passadeira de peões daquelas em que o verde é simultâneo para o trânsito e para as pessoas, com aviso luminoso amarelo de passagem de peões. Estou, obviamente, parada, pois encontra-se um grupo de três ou quatro pessoas no passeio com manifesta intenção de atravessar. Passa um rapazola, diz para a petiza que o acompanha "Está verde", diz-me "Está verde...", com um encolher de ombros irónico, eu sorrio e respondo, com um encolher de ombros conformado, "Pois, já vi". E ele devolve-me o sorriso. 
(Simples, assim.)

~
Estamos a alcançar, meu Rosinha e eu, uma passadeira de peões que se encontra com o sinal vermelho para eles, verde para nós dois. No passeio, com intenção de atravessar, um casalinho de crianças enamoradas entre si. Ela põe os dois pezinhos na estrada, ele chama-lhe a atenção, eu abrando e digo "Oi?". Ela sorri, envergonhada pela leve irreverência, e recua. 
(Se eu podia tê-los deixado passar? Podia, mas a minha função neste Mundo é a de educar as gentes. E as mães dos dois haviam de me agradecer ter-lhes dado o pequeno ensinamento que é: respeita os outros, se quiseres ser respeitado.)


22/03/2017

eu acho que estive lá

estava uma mulher ao meu lado, segura pelo que foi a cintura — não presa nem amarrada — ao cadeirão onde estava sentada, para que não se levantasse dali e saísse a correr, como se isso fosse possível, dada a fragilidade das pernas e de toda ela. Repuxava as calças de malha para cima, expunha as meias de lã grossa e a magreza da velhice, e murmurava, os olhos pregados nos meus, 
ai meu pai, ai meu pai
e isto foi no dia a seguir ao Dia do Pai, ainda eu não tinha recuperado da falta do meu nesse e nos outros dias todos. 
Antónia, Antónia
e depois dirigiu ainda mais o olhar perdido para o meu, acertando-me em cheio,
ó Ana,
e eu, que sou parva, cantei-lhe baixinho
ó Ana, ó Ana, senhora minha mãe vou já.
no outro extremo um homem lia um livro sobre OVNIs, já há semanas que o vejo agarrado àquilo, suspeito que não passa da mesma página, que pode ser a única que está impressa em todo o livro, o homem estuda com afinco enquanto me faz sentir a mim um extraterrestre.
continuo a arranjar as mãos tão amadas, que me ficam lindas nas minhas, intuo que no tempo que dura aquele bocado a minha mãe é a pessoa mais lúcida daquele espaço todo, embora me repita
és tão linda,
e, quando esse tempo acaba, verifico que as minhas mãos envelheceram enquanto ele durou, mas deixei-lhe as dela pequenas e frescas como as de uma criança. Primaveris. 


Quantas coisas erradas contém esta mensagem?


Várias. Muitas. Todas. Mas a principal, para taradinhas como eu, é o E no lugar do I, no verbo flirtar, que vem directa e irremediavelmente do inglês. 

(A pessoa sente que arrisca a própria vida para tirar estes flashes, que, apesar da sua parca — e parva — qualidade, custam bastante a conseguir. E nada de reconhecimento.)


21/03/2017

O problema não sou eu, são eles

A geladaria tem todas as mesas ocupadas, excepto uma. Ainda me encontro a pagar o que vou consumir, pelo que não ocupei essa mesa, que considero — pelos vistos, mal — que apenas será minha quando estiver servida. Entra um grupo e senta-se, ocupando-a, antes de fazer o pedido. Pergunto à funcionária (que está francamente maldisposta, quem sabe se por estar a trabalhar a um domingo, e que já maltratou duas meninas diante de mim), se pode ser assim, chegar e sentar antes do pedido. A mulher tem um ataque, ruboresce e enfatiza-se toda: "A sala é livre, cada um senta onde quer". Ocorre-me a súbita vontade de me sentar atrás do balcão, aos pés dela, impedindo-a de trabalhar.
~

Entro na farmácia, peço Ben-u-ron e a ajudante pergunta-me para o que quero aquele medicamento. Procede exactamente da mesma forma se eu for lá comprar pensos rápidos ou uma chucha. São ordens, aquela desculpa-caldeirão onde tudo cabe. Respondo que é para a eventualidade de ter febre e dores musculares. "E quem é que lhe receitou o medicamento?". Pergunto-me se inquirirá da mesma forma para uma chucha, mas digo, calmamente: "Ben-u-ron? O médico...?". Mas ela é detective da bata branca e quer falar. "Qual médico?". Perco a paciência, a tal que é curta, e atalho: "Se não quiser vender-me Ben-u-ron, eu posso ir a uma das mil farmácias e parafarmácias que existem aqui à volta". 
~

O vendedor do Barclaycard* vê-me surgir ao fundo do corredor e a linguagem corporal dele diz-me que me vai abordar pela enésima vez desde tempos que não contei. Fico nervosa por constatar que a escolha é feita em função da apresentação da "presa": nos dias em que me visto safoda, sou ignorada; nos outros, é um martírio de pedincheiras. Contorno o stand pelas costas, estou quase a safar-me dele, quando me apanha no fim do atalho. Lá se me escoa a curta, e vai de indagar: "Se me viu ao longe, viu que eu contornei o stand para o evitar, percebeu que eu não quero o cartão que está a vender, o que é que o leva a tomar uma atitude dessas?". Deixo-o a rosnar um "Antipática", ou lá o que é. 
~

Na loja onde compro os collants, que toda a gente sabe qual é, tenho sempre, sem excepção, problemas de comunicação. Estou a ponderar seriamente tomar um calmante — ou um relaxante muscular — cada vez que tiver que lá ir. Exemplo: peço collants pretos, opacos, tamanho M, com compressão. Existe algo mais específico do que isto? Na Calzedonia*, sim. "Mas por que é que quer levar esses e não estes que estamos a promover agora, que têm função push up, a malha é muito mais bonita e o conforto não se compara?". Apetece-me sentar no chão a espernear, a gritar como uma criança birrenta e malcriada, "Mas por que é que não posso levar os collants que quero levar? Eu quero os meus collaaaaaaants, mamãããããã!".



* Ninguém me paga para me calar.

20/03/2017

Isto é melhor do que ler uma ¡Hola! inteirinha (e não faz tanto mal)


Hoje canta-me isto na jukebox mental. (Até eu preciso de uma paciência extrema para me aturar.)

(Trazido na mala de regresso de Erasmus de uma criança minha.)


Com os copos

Este post também se podia denominar 
ou então,
Pois, mas não chama. Chama-se como me apeteceu no momento em que digitei o título, com vista a atrair freguesia, que o movimento anda fraco, ninguém me liga, sou tão pequenina e já me dói a barriga. 
Até podia chamar-se
Era só ter-me lembrado.
(Eia, agora, tudo a vir cá ler, a achar que LB, aquele ícone, se emborrachou e veio cá contar...)

Não sei se alguém se lembra da celeuma aqui alavancada com aquilo dos copos do Continente*. Até veio cá uma azeda destilar, o que me deu para mais de demasiadas visualizações, e a porcaria do post que daí resultou é dos mais vistos de sempre. (Imagino que a própria se finou de alguma maneira, inquinada e seca, com o dedito ET cravado na tecla F5.)
Eu, por acaso, e como gasto lá na mercearia do Titio Mimi, acabei — tudo sem querer! — preenchendo o equivalente a seis cadernetas, que me valeram doze copos, para os quais tive que despender mil, novecentos e vinte euros, apesar de, na conta final, me terem surgido uns apenas modestos cento e vinte euros e não tenha pago rigorosamente euro nenhum. (Não sei se estais a acompanhar.)
A minha escolha voltou-se para os copos de água, pois que sou assim destas modéstias e não me pareceu, à cabeça, que os de vinho ou os de gin me fizessem assim uma falta inadiável no enxoval.
Apesar de ter passado a gozar de uma angústia nova, derivadas da perspectiva de se me partir um, aqueles doze copos fazem-me muito feliz: são de uma beleza redonda e oval, ficam sempre transparentes, independentemente do número de vezes que se lavem na máquina, e, sobretudo, são musicais. As minhas refeições passaram a ser acompanhadas ao xilofone, que é aquele som que sai da minha unhaca quando lhes bato com ela no vidro que diz que é cristal. (A ver se não musico com muita força e não me vai parar um deles ao chão, lagarto, lagarto.) Enquanto eles durarem, dura também a alegria de os ter. (Redundante? E redondo oval, também.)



*NMPPI

19/03/2017

The girl next door # 8

Perdi a conta a há quantos anos mora ela aqui no megatério onde eu também. Talvez uns três, contra os meus três e mais vinte sobre os dela. Vejo-a passar, quase diariamente, a passear o caniche que teve o infortúnio de ter nascido com uma raça caricata, mas que defeca abundantemente o pouco relvado que nos envolve a todos, e que ela, por qualquer motivo que me escapa, não consegue limpar. Sozinha, passada da meia-idade, gorda, as mãos ocupadas com um pouco de nada: a trela e o cigarro. Muitas vezes me questionei por que diabos me olhava com antipatia, me recusava o cumprimento de boa tarde, me virava a cara. Na minha imensa modéstia, imaginava que eram lá coisas de gaja, cenas malucas de mulher sozinha, que até queria, mas já perdeu a esperança numa família, em filhos, num corpo que nunca teve. 
Percebi ontem, quando ela me bateu à porta, munida de dois "homens" — um esquizofrénico que nunca abriu o bico por se encontrar numa fase catatónica, e outro que era igual a ela, porém careca —, para me confrontar, com péssimos modos, com o facto de eu ter o meu carro pretensamente mal estacionado na garagem do prédio. Expliquei-lhes que tinha o carro dentro dos recortes, mas a fúria dos dois era tanta que estavam cegos e, pelos vistos, também surdos: o careca apontava o dedito no ar, o catatónico cada vez mais hirto, ela gritava coisas como "Qualquer dia dou uma mocada no seu carro e estou-me a cagar", e eu esclarecia-a de que tinha acabado de cometer um crime de ameaças, e com testemunhas, por força de eu ter pelo menos três filhos maiores de idade. Entretanto, surgiu uma mulher escanzelada e eles já eram quatro — e nós apenas dois, numa clara desproporção —, a gritar que a irmã estava no seu direito, e que iam chamar a polícia e que iam dar parte e que nós havíamos de pagar bem caro o estado em que o carro da irmã se encontra e téu-téu-téu, que a irmã é uma pessoa muito civilizada, mas que isto já é demais.
E agora questiono-me se os problemas de cada um, como são estas cenas malucas de mulher sozinha, que até queria, mas já perdeu a esperança numa família, em filhos, e num corpo que nunca teve, não podem ser o detonador de um ódio dirigido a um alvo certo, cuja bomba pode explodir a todo o momento, sob um argumento qualquer, com consequências mais ou menos imprevisíveis. E de quantos ódios desta natureza não seremos todos objecto, sem sabermos, sem termos contribuído em nada para isso, a não ser pela nossa mera existência, que será coisa que — vá lá, minha senhora... —, não conseguimos controlar, a menos que façamos a vontade ao doido e nos matemos. 
Mas isto já sou eu a extrapolar, e a tentar perceber, na minha imensa modéstia, os componentes químicos do cérebro da minha vizinha.

18/03/2017

Jardins secretos

Tinha que fazer tempo, como um fabricante de incorpóreos para que tantas vezes somos fadados, perto do equivalente a ter paciência, ou ganhar coragem, e que há-de ser qualquer coisa que só o Criador, ou quem pôs, mais ou menos aleatoriamente, tudo neste lugar desarrumado, sabe o que significa. Tinha deixado uma criança a fazer exame de código da estrada, a mesma que me parece que nasceu ontem — ainda tem bochechinhas, bolinhas de Bichat, e agora já fez a parte teórica, qualquer dia guia —, e eu não dei por esse tempo passar. (Hei-de tê-lo fabricado em excesso ou em defeito, que me voou, naquela corrida intangível que só ele.) Andei uns largos metros até me afastar suficientemente de Chelas, onde nenhum café me parecia poder oferecer o café, e fui sentar-me numa improvável esplanada à sombra, praticamente vazia de gentes, mas cheia de mim e da minha companhia única. Do nada, surgiu uma rapariga e seu cachorro saltitante, lembrando-me que o planeta é o Terra. Nunca bebo aquela marca de café, tinha a trinta metros à minha disposição aquela de que gosto mais, mas não me movi dali, desfrutando de um daqueles insólitos momentos de pura felicidade, em que o Mundo até pode dar-se ao luxo de acabar no instante seguinte, que eu iria com ele, completamente feliz, sem passado e, sobretudo, sem futuro. 

17/03/2017

Objectivo Biquíni 2017 - Dia 1

Levantei-me toda podre, derivados da rinite, depois de ter tomado o pequeno-almoço na cama, como acontece há vai para mais de duas décadas, e sim, como sempre me disse a minha mãe (e é só nas mães que eu acredito), nasci com o rabo virado para a lua: uma lua muito cheia, de uma banal segunda-feira à hora de almoço, mas, ainda assim, eficaz a este ponto.
O meu primeiro pensamento do dia espelha-se aqui:


O sacana, em vez de me dizer o habitual, "És tu, minha princesa, fora as outras Brancas de Neve todas que para aí há", pôs-se com metáforas que me fizeram lembrar aquele macaco (que, pelos vistos, é o que conhece o verdadeiro segredo da elegância, seja lá ela de que espécie for).
Tossi as tripas e os brônquios por solidariedade, ergui-me a duras penas, e trabalhei durante duas horas mal contadas, ao cabo das quais tive vontade de comer. Bebi um café e parti para o ginásio.
Malhei em modo auto-punição, cheguei ao balneário e assoei-me, o que fiz de forma de tal forma ruidosa, que tive que interromper a meio, pois já estava a ser vítima de olhares oblíquos das nuas todas, que precisam de um silêncio sepulcral para decidirem se vestem primeiro as cuecas ou o soutien. 
Tenho fome. Vou almoçar.
A partir de hoje, só como gelo e bebo água, até ficar qual cão escanzelado e leishmanioso, que a minha família tenha orgulho de passear na praia. 

16/03/2017

And that awkward moment # 21

em que tocam longamente como quem chama por ti à campainha do teu lar, depois insistem sem esperar aqueles segundos socialmente aceites como razoáveis entre dois toques tão excessivamente "familiares", uma das tuas pessoas vai abrir a porta, ouves vozes masculinas a transmitirem-lhe um recado, e apareces, para saber o que diabos se passa, ou que familiaridades vêm a ser aquelas.
Estão três homens à tua porta: dois deles, conheces por morarem debaixo do mesmo tecto que tu, já que administram o caixote condómino que é de todos. O terceiro homem nunca viste, mas, ao que te é dado perceber num relance, anda a arranjar qualquer coisa que está desarranjada lá nas tubagens. Este terceiro homem encara contigo, responde ao teu "Boa tarde" geral com um "Olá, boa tarde", e pisca-te o olho. Só que pisca com ênfase e determinação. E repete, e repete, cada vez mais rapida e explicitamente, num ataque nervoso que só te apetece esbofeteá-lo, a ver se aquilo lhe passa. 


E, enquanto aquela situação de cerca de, vá, um minuto, dura, várias possibilidades que expliquem semelhante fenómeno se te apresentam:
1. O homem tem um tique;
2. O homem não se manca e está a fingir que tem um tique, para disfarçar o descaramento;
3. O homem não tinha um tique e passou a ter, mal te viu;
4. O homem pensou que lhe tivesses piscado o olho e foi apenas gentil;
5. Quem tem o tique és tu e o homem só está a alinhar, por contágio;
6. O homem faz parte de uma seita em que as pessoas se cumprimentam assim. Também não há os dos estalinhos da boca e os dos fist bump? (Levanta as mãos aos céus por não ser dos que beijam na boca tudo o que mexe.) (Não levantes as mãos aos céus.);
7. Experimenta avançares para ele de fist bump em punho, a ver se aquilo lhe passa;
8. Meu Deus, meu Deus, esta situação está quase a acabar;
9. Vou meter aquela minha cara sou-uma-azeda-odeio-pessoas;
10. Oh, não, piorou o tique ao homem. É um tique.


Pensamento escatológico do dia # 22

Estava para aqui a assoar-me, assolada que ainda estou da minha estimada rinite, produzindo um estrondoso ruído, ou, mais concretamente, um estrépito histriónico, e, assim, transpondo um considerável peso do nariz para o bocado de papel higiénico que me valeu, e foi quando me lembrei do aspirador nasal, aquela maravilhosa técnica de sucção do dejecto nasal, passe a redundância (ou é um pleonasmo?), inventada para que nenhuma mamã deixe de saber que o amor pelo rebento nunca rebenta, é incondicional, ilimitado e indecente. Pois que poucas serão aquelas que, ao procederem à aspiração das fossas de suas criações, não lhes tenha chegado à boca uma amostra da dita secreção, tamanho o empenho e a determinação que lhe dedicaram. 
E, no fundo, lembrei-me de perguntar se é chato pedir a alguém de confiança que me dê uma chupadela convicta na outra ponta do cabo, só para me aliviar deste excremento que, em épocas como a actual, nos ataca até ao cerebelo. Falo por mim.


15/03/2017

é que hoje não me apetece ser feliz

sabes, há minutos na vida em que me tomo de um tamanho que te caibo debaixo do braço, como naquele tempo em que te punha a ti debaixo do meu.
já estivemos juntas nisto quantas vezes, tu e eu? Batas, agulhas, receitas, palpites, exames, e aquele cheiro que se nos entranha e se nos intrinseca como se saísse da nossa pele e da nossa respiração. 
já te vi no limite quantas vezes?
olha, e tu a mim, de te ver assim?
e já viste que estamos juntas naquele não saber, naquela expectativa que é uma porta blindada e, ainda assim, ou talvez por isso, estamos felizes por, ou apesar de estarmos ali?
reconhecemo-nos companheiras, sabemo-nos agarradas por aquele outro cordão que é feito de amor.
mas hoje não me está a apetecer nada ser feliz, porque de há uma semana para cá que me voltou a doer tudo até às entranhas de onde te me arrancaram, roçando o teu corpinho pelo meu coração e pela minha alma, logo ali ao lado. 
não sei como fizeste aquilo, mas foi saber-te aflita e puseste-me a conduzir a cento e cinquenta e nove quilómetros por hora, eu, que nunca tinha passado dos cento e trinta, e fizeste-me fazer a maior viagem ao volante de toda a minha vida — para te ir buscar. 
e vou mais vezes, e vou de todas as vezes que te veja de asa quebrada, pintainho. 
quero que estejamos sempre juntas, mas não ali. 
tu prometes nunca mais adoecer, e eu prometo nunca mais me apetecer não ser feliz.
está bem?

Eu sou aquela pessoa que nunca, em circunstância alguma, deves levar ao supermercado # 48

O que quer dizer-me o Continente* online, o cosmos ou a vida, quando, pelo segundo mês consecutivo, se recusa a entregar-me os detergentes das máquinas da roupa e da louça? 
1. Que devo abster-me de lavar roupa e louça? 
2. Que, caso assim opte por, e ao fazê-lo, me aguarda uma época de grande contenção de despesas, ao nível não só saponário, como também aquático e eléctrico? 
3. Que o bedum e o resto de comida agarrada ao prato se suportam tão bem, que devia deixar-me de minudências domésticas? 
4. Que eu sou uma maluca manienta das limpezas e devia era preparar-me para uma situação de estado de emergência/ilha deserta/casa dos segredos?
5. Que há coisas mais importantes na vida do que a higiene?
6. Que toda a roupa e toda a loiça são recicláveis, no sentido que são reutilizáveis infinitamente, sem que, entre usos, seja necessária a passagem por — sequer — água? 
7. Que devo encontrar uma eco-alternativa e passar a usar roupa descartável e talheres idem?
8. Que está inventada a nova dieta Objectivo Biquíni 2017, que passa por ter nojo do próprio prato? 
9. Que está inventado o novo Movimento Naturista 2017, que passa por ter nojo da própria roupa?
10. Que não querem vender, logo ganhar dinheiro, logo prosseguir o fim para o qual a porra da sociedade que constituíram se obrigou?

(Já agora, também estou para aqui a fritar em óleo de coco [ai, o circunflexo que caiu, ai o cheiro do óleo...] esta dúvida: o que quer dizer-me o Continente online quando, pela segunda vez consecutiva em que posso descontar um talão de 15 % sobre o valor das minhas compras, o sistema lá deles breca no último momento, à última da hora, no último dia em que posso descontar a porra do talão, e ele expira!?)

* Ninguém me paga para me calar

13/03/2017

Coisas em que não é assim tão bom ser mulher # 1

Estacionares o teu carro no lugar mais impossível, entre duas colunas, em que ficam apenas disponíveis cinco centímetros para cada lado dos lados, saíres contente, mas não vitoriosa, aliviada, mas não impante, e teres que ignorar os sorrisos condescendentes, paternalistas, admirados pela sorte que protege os principiantes (mesmo, e principalmente, sem te conhecerem de lado nenhum de todos os teus) e não os audazes, a mesma sorte que não os acompanhou a eles, por falta de qualquer coisa (que passa, basicamente, por saber estacionar a porcaria de um carro). 



12/03/2017

Antípodas

Estamos sentadas lado a lado, cada uma com uma manicure, minuciosamente a arranjar-nos as unhas. Ela chegou depois de mim, já eu tinha passado o primeiro processo, de arrancar o que sobra do verniz gelinho, o que faço religiosa e violentamente na véspera daquele trabalho, para o abreviar o mais que posso. Corto também as unhas rente ao sabugo, coisa que faz toda a profissional reclamar de nada ter para limar. (Pois que é precisamente essa a intenção.)
Ela abunda em carnes, em vida estereofónica, em unhas: são gigantes, terminando cada uma em dois vértices pontiagudos que, numa soma ou multiplicação muito rápida, concluo serem vinte, só nas mãos. Lembram-me as navalhas do mar, mas não é uma lembrança feliz. Ela crava os olhos em mim, que pareço uma mosca morta, perto de tanta efusão. Sinto-me doente porque o pólen me mata, e isso faz-me ficar inerte e muda. Ela bamboleia o enorme quadril na cadeira, chacoalha os vários pneumáticos que lhe compõem o torso, enquanto a manicure lhe lima os canivetes. Entoa "Bacalhau quer alho", rindo aberta e escancaradamente. Eu estou metida no inferno.
Por alguma razão que desconheço, engraça comigo. Ou então, percebeu tão claramente que conto, em decrescente, os segundos para dali sair, que persiste nalguma espécie de provocação. No rádio soa Enrique Iglesias, qualquer coisa que le duelen los pies, enquanto a mim me duele tanto la alma. A manicure dela comenta,
- Hã, dona Linda, e a sinhóra com umas unhas dessi tamãio?
E concorda ela, reforçando:
- Eu acho lindas, não consigo tê-las assim curtas como as suas.
Sou a maior hipócrita que conheço, quando, diante da visão das mãos dela, inchadas e encardidas, dez navalhas com vinte bicos, respondo:
- São uma maravilha. Mas eu não posso, exerço uma profissão que não permite. Com umas unhas desse tamanho, não consigo escrever no computador.
Há-de talvez ter pensado, durante a pouca pausa que fiz para, digamos, respirar, que umas unhas muito compridas me analfabetizariam como por magia.
- É que carrego numa tecla, no teclado, e a unha digita-me outra.
Saio com dez fósforos apagados nas duas mãos, enquanto ela terá saído com dez navalhas de um azul petróleo, desenhadas de rendas brancas e cravejadas de brilhantes cintilantes.

11/03/2017

É tão blogger da minha parte # 12

Aqui se revela em primeira mão o outfit com que hoje a pessoa Blue enfrentará não só o baptismo de uma criança, como também a intempérie que se adivinha e avizinha. Digamos que o principal, que é o vestido, foi adquirido num pressuposto veranil que não veio a verificar-se, mas, como qualquer pelintra que se preze, agora está comprado, agora está pago, agora custou dinheiro, agora levazio. Tipo ajoelhou, tem que rezar. (Mau...) Estou até temente, não a Deus, mas à real possibilidade de, com esta indumentária, ofuscar o próprio homenageado do festim, que é um rapazito de dois anos de idade. Logo se vê. Também não gosto de antecipar os problemas.




1. Os meus Cubanas* Night Blue, que são azuis;
2. O bolero [Lanidor*], para tapar os braços e evitar que piore desta coisa que me adveio do facto de me ter metido debaixo de uma árvore de florzinhas brancas que cheirava que era uma maravilha, mas agora estou que quase nem consigo respirar (o que é bom, para o caso dos maus odores, que eles ocorrem);
3. O vestido [Lanidor*] mais redondo do meu guarda-fatos;
4. Os collants [Calzedonia*] — azuis, off course —, apesar de aquelas não serem as minhas pernas (mas não faz qualquer diferença para o caso).

A mala? Pois que ainda não decidi. Previsivelmente, seria azul. Mas será, certamente, vermelha. Ou amarela.

*NMPPI

10/03/2017

Eu já vos digo o que é stress pós-traumático

É o que sinto desde ontem, vai não tarda para vinte e quatro horas. 
Ia eu muito bem ao volante de meu novo espada azul, Rosinha, quando avisto, a coisa de cerca de trinta, vá, quarenta metros, mais um corredor em pessoa, cheio da dinâmica e da aeroespacialidade. Ele era o óculo de ski, ele era equipamento completo em matchi, mais garrafa, mais sacolinha de transporte do telemóvel/medidor de pulsações/pacemaker/cigarros, ele era todo um atleta sem pista, todo um profissional da corrida sem rivais à altura e ao comprimento, todo um rebelde sem causa. Sei lá, digo eu. Um bocado a avaliar por aquilo que me aconteceu — posso afirmá-lo — a seguir. 
Realmente, reparei numas coisas junto ao rebordo da perna dos calções. Não sei o que é que pensei — se é que pensei, pois que nem sempre o faço —, mas talvez que fosse o forro dos bolsos a espreitar [só eu para achar que uns calções de corrida têm bolsos, mas o pânico leva-nos a conclusões esdrúxulas], ou, naqueles décimos de segundo que durou o meu percurso de carro até ele, somados à velocidade supersónica que o homem levava, quando estávamos mais perto um do outro, ocorreu-me quiçá um porta-chaves...
... em forma de maracas...
... as maracas propriamente ditas...
... um jogo de clic-clac...
[por acaso, tive um, quando era miúda, e penso que fui persona non grata no meu próprio lar por uns tempos, só à pala.)
...
Pois, era isso mesmo.
Não sei se o senhor corre sem cuecas e depois corre o risco.
Não sei se é possível que não os sinta à fresca. (Na verdade, nunca tive nenhuns, portanto dou-lhe o benefício da dúvida.)
Não sei se faz de propósito, porque assim lhe dá mais pica. E mais endurance. 
Não sei se existe salvação para a Humanidade. (Também porque las hay, pessoas como eu.)
Não sei como não me fui estoirar contra, pois, qualquer coisa. 
(Não me perdoo não ter fotografado, pois serei eternamente mentirosa, mas isto também vale o que vale.)
(Mas sabem o que é que me atormentou deveras todo o dia de ontem? "Se morro hoje, os últimos coisinhos que vi na vida foram os de um estranho". Que dor. Por isso é que não morri.)

09/03/2017

Obrigada por não terem perguntado

Está bem que amuei, magoei, deprimi. 
Andei lá indecisa entre estes três, experimentei todos e trouxe um deles.
Ficam-me todos a matar, mas a vida é feita de opções. 




Um dia, quando me passar a mágoa, explico por que é que escolhi o que escolhi. 

[Tudo Lanidor, mas NMPPI]

And that awkward moment # 20

em que, durante uma conversa completamente informal, com alguém que encontraste por acaso e que não vês há mais de dez anos, és convidado para o baptizado do seu filho mais novo, que terá lugar... daí a sete dias!?
E, passados quatro dias — portanto, três dias antes do evento —, recebes o convite em postal na tua caixa de correio?
E ainda: do convite constam os nomes dos pais abreviados — Fulano de Tal e Fulana de Tal —, mas o da criança por extens(íssim)o, numa carrada de dois nomes próprios e quatro apelidos cheios de dois LL que se te enrola a língua de tanto tentar pronunciar?
E mais: só te ocorre, dadas as circunstâncias, uma prenda estapafúrdia, porém adequada, nem que seja com capa de prata, toda trabalhada, a brilhar, a brilhar?
E a cereja? Zero ideias para o que levar vestido. Vou consultar sites, que não há cá tempo nem paciência para correr armazéns de fancaria. (E ainda aparecer vestida de igual a uma tia também cheia de LL e incapaz de dizer os éues, Uísa Uionor Uauande Uima de Méuuo e Vasconcéuuos.)



08/03/2017

Às minhas mulheres

Têm-me passado tantas pela vida. E tantas têm ficado.
A minha mãe, berço pequenino da gigante que me fiz, desde cedo capaz de me caber no colo. Vejo-a frágil, tal como o cristal azul por que se perdia de amores, mas vejo também que jamais se estilhaçará no meu coração. São opacas as horas em que nos olhamos e não nos reconhecemos, são eternos os momentos em que nos sabemos intactas.
A minha avó Maria Antónia, que não conheci mas de quem tive saudades toda a vida, a quem aprendi a amar apesar e para além da enorme falta que sempre me fez. 
A minha avó Maria da Glória, gloriosa raiz do meu pai tão amado, dobrada em risos diante dos meus tricots. [Eu fazia "gravatas para o meu pai", em ponto de cadeia, com metros e metros de comprimento.]
A minha Titi, que me foi mãe e pai de todas as vezes em que já não havia lugar para mim, e que me ensinou toda a magia que pode sair das nossas mãos.
A minha irmã, companheira e cúmplice de brincadeiras e disparates e segredos e medos e lágrimas e, principalmente, de gargalhadas que ainda hoje choramos, de parvas que nos mantemos, quebradas, mas inteiras.
As minhas primas, as mais velhas pela sua inesgotável paciência, as outras por terem sido as minhas bandidas preferidas quando a idade não podia perdoar. [Um banho de lama até ao pescoço num terreno pantanoso já ninguém nos tira.]
As minhas amigas, que — desgraçadas — ainda me vão aturando, mas a quem só dou o meu melhor. (Pode ser isso que as faz gostar de mim.)
As minhas bloggers queridas, que estão cada vez maiores e mais bonitas.
Mas, sobretudo, as minhas três filhas, três mulherzinhas que (ainda hoje me pergunto como é que) fiz tão bem.


E, já agora, menção honrosa aos homens que nos sabem fazer mulheres todos os dias. 
E a mim, genitais. E a mim, que tive a felicidade de me terem calhado os dois xx (de ouro).


07/03/2017

Parir é dor, criar é amor;

A César o que é de César

- Ditados # 19 e # 20

Estava ontem a passear pela blogobola, passei por um blog que também sigo (mas não persigo, como a nenhum) e mergulhei de cabeça — salvo seja — [não abram o link se não estiverem preparados, meus maricas] nestas fotografias tiradas em pré, durante, e imediatamente pós parto.
E insurgi-me.
Vêem-se mulheres a dar à luz dentro de água, no carro, nas escadas, de gatas, de cócoras, a fazer o arado e o pino [isto já não, mas eu tinha que exagerar], vêem-se as cabeças das crianças a saírem dos sítios mais incríveis de suas mães [tipo esse], vêem-se pais com a mão na barriga, a mão nas costas, a mão por todos os lados (ele há homens com várias mãos), vêem-se crianças pequenas a assistir ao parto (o que é uma péssima ideia, principalmente se der merda), vêem-se outras mulheres, manifestamente não parteiras, a colaborar no evento (a curiosa, a mãe da mãe, a companheira da mãe). São 59 fotografias, mais ou menos bem conseguidas, mais ou menos comoventes, mais ou menos mais-ou-menos e também mais e menos. De todas, apenas uma é uma fotografia de um parto por cesariana. 
Desculpem. Eu só queria perceber se o nascimento por cesariana não é um nascimento digno de registo e depois destaque. Se é preciso sofrer, respirar, hiperventilar e a seguir parir para se dar o processo completo de se pôr uma pessoa no mundo. Eu pus quatro, todas por cesariana. (Por isso é que não pus cinco ou seis, e não se tratou nunca de uma questão religiosa ou financeira, mas apenas um assunto de amor.) Não tive direito a contracções, a dores pré, a corpo suado, a cabelo empapado. Não houve pai na sala de cirurgia, por opção dele, mas também fui bem compensada por uma enorme equipa. (Nós, cesariadas, temos direito a quatro médicos — cirurgião, segundo cirurgião, anestesista e neonatologista — e duas enfermeiras — parteira e pediátrica. É muita gente.) Mas tive direito às mesmas (ou melhores) dores logo a seguir. E, sobretudo, tive aquele mesmo momento mágico, em que o relógio efectivamente pára, e todos os presentes fazem um silêncio berçal, até que alguém pergunta as horas, para registar. Tive direito à pele com pele, ao cheiro animal, às lágrimas roucas, aos risos de alívio e amor eterno.
Quatro pessoas. Respect, hã?



06/03/2017

Da minha incapacidade para estar em velórios

Por contingências que a vida tece, e a morte também, pois que dizem que essa faz parte da outra, mas eu só acho que se estão nos antípodas reciprocamente, calhou-me em má sorte a presença em dois velórios no espaço de uma semana. Há muito que assumi que não sei estar em velórios: nunca vou tranquila embora séria, não sei o que me espera e isso inquieta-me, não sei dizer aquelas coisas "meus pêsames", "força", "agora tens que...", "faz parte da vida", ou ficar a ouvir o relato de "como é que foi", como se como é que foi explicasse aqueles dois segundos sucessivos em que a pessoa passou de viva para morta. Levo comigo o receio de ter um desaire dos meus, de me esquecer de onde estou e desatar a rir por qualquer razão, ou de encontrar uma cena que me desmanche toda, para o bem e para o mal. Creio que estou tão concentrada por não querer chorar que instintivamente procuro qualquer coisa que me alegre, ou, pelo menos, que me arranque daquela tristeza que é o ambiente de um velório, mesmo que ele seja de uma pessoa com duzentos anos. 
Foi assim que assisti ao diálogo entre uma senhora de muita idade e uma menina de vinte e um anos, com cara de quinze, magrinha, voz de criança:
- Filha, em que ano estás?
- Eu estou no quarto ano... 
O espanto, o movimento na cadeira, toda a linguagem corporal da senhora que, sendo professora, e apesar da avançada idade, está actualizada nas designações dos anos de escolaridade, e, por isso, não pode ter confundido quarto ano com o antigo quarto ano dos liceus. Sabe perfeitamente que quarto ano é a antiga quarta classe, e daí a sua incredulidade: 
- No quarto ano, filha? — Olhando e remirando a miúda. Por mais infantis que fossem os seus traços, vendo-lhe um tamanho de mulher, embora pequena, tentava perceber como é que alguém tão grande podia estar no quarto ano. — No quarto ano?
- De Medicina... — Esclareceu ela.
E eu para ali fiquei, agora sim, concentrada, os dedos a segurar a parte superior do nariz, lacrimejando discretamente. 

05/03/2017

Se não tivesse gatos, tinha cães

E tinha uma casa grande, na pradaria, para os ter.

 

(Parecendo que não) a propósito do oitavo aniversário da minha Mia. Está uma senhora. Oito anos.


04/03/2017

Mais vale rainha por cinco segundos do que princesa por cinco minutos

Chego à festa e tento reconhecer algumas pessoas que não via há vinte ou mais anos. Não quero cometer nenhuma gaffe, porque é nestas circunstâncias que sempre me acontecem e elas são, com o passar dos anos, cada vez menos perdoáveis. 
Vejo chegar o irmão mais novo da minha amiga, talvez uns três anos menos do que ela. Conhecemo-nos já éramos mulheres, embora muito jovens, ele seria um homem feito, mais jovem ainda. Diz-me, Eu sou o Francisco, respondo, Eu sei, e ele persiste: Ah, mas eu era muito pequenino. 
De repente, eu era Queen Elisabeth II, diante de um desastrado presidente que, velho, se quis fazer jovem à custa da comparação com uma senhora. 
Sem a presença de espírito da rainha, talvez por não ter trono, coroa ou ceptro sequer de miss, ao invés de confirmar Tenho a certeza que eras, limitei-me a um Eu já era assim, enooorme
Não doeu nada, sobretudo porque se seguiu o momento em que fiquei a vê-lo afastar-se. Continua pequenino, e agora acresce que está (definitivamente) careca. E gordo. 
E eu não. 

03/03/2017

Está tudo pronto para o grande dia. Só ainda não escolhi a farpela, mas também, todo o trapinho me cai bem

Já comprei a prenda. Por acaso, comprei uma coisa que dá uma trabalheira do genital a quem a recebe, que é uma daquelas caixas com escapadinhas românticas e aventuras várias. Aquilo, só para conseguir marcar, é uma cegada que quase leva o povo a desistir, e não será por acaso que tem uma validade de dois anos. Ainda andei indecisa entre o salto de pára-quedas, a aula de surf em grupo ou outra coisa qualquer ainda mais erótica, mas meti-me um chip com um máximo para gastar e deu um jantar a dois, que será romântico se eles quiserem, e eu desejo fervorosamente que sim.

Arranquei o preço porque sou uma pessoa
 que recebeu uma educação extremamente diferenciada e sei das coisas

Entretanto, ligou-me uma excitada daquelas cuja vida social se resume a casamentos e baptizados, e que um aniversário não infantil é a coisa mais divertida em que vai participar nos próximos três anos, dando-me conta de que vai haver uma desgarrada. Já aqui a parva de serviço perguntou assim: "Mas vão soltar alguma vaca?", pois que confundiu, assim muito de repente, desgarrada com garraiada, e já estava a ver-se metida em trabalhos e a não poder calçar salto alto para a ocasião, ó-pernas. Após breve esclarecimento, comunicou-me a outra que devo preparar uma quadra que encaixe na métrica de "Ó rama, ó que linda rama", uma vez que os felizes contemplados (palavras dela, no pico da excitação) — e eu fui-o (claro...) — com tal tarefa vão cantar, aí sim, à desgarrada. E lá vou eu.
Falha-me a imaginação, escasseia-me a vontade de pensar em qualquer coisa que não envolva a sigla NIB, ou então a expressão número de identificação bancária, pelo que me pus a ensaiar o que me veio à cabeça, e é isto que levo.

02/03/2017

Eu tenho problemas com tudo # 21

Vou à lavandaria self-service, porque tenho a máquina avariada. (Aliás, tenho tudo avariado, a do café também deu o grito, as minhas botas mais queridas idem.) Meto tudo na primeira máquina que me aparece, sem perceber que tem capacidade para 19 quilos. Quando constato que, afinal, a roupa cabe toda numa de 12, mudo, retiro o cartão da ranhura para anular a intenção, mas o sistema da coisa já não me credita a quantia correspondente a 19 quilos, para que depois possa debitar a dos 12. Não está uma alma viva que me possa acudir, mas tenho um botão de ajuda mesmo ali ao lado. (Tipo botão de pânico.) Carrego no botão e não acontece nada. Não me admiro, pois tenho o mesmo problema à saída dos parques com Via Verde, nunca me acodem ao primeiro grito de socorro. Julgando que o meu indicador não foi suficientemente enfático, carrego com mais força e durante mais segundos. Mudo e quedo. Ligo então para o número de ajuda que ali consta, e atende-me um senhor estremunhado, isto passa das 10 da madrugada. Relato-lhe o meu drama em cerca de três mil palavrinhas apenas, e o homem responde-me: "De onde é que a senhora está a falar?". Desiludo-me a mim mesma. A resposta ideal, correcta ou lógica, que seria "Do Além!", "Da periferia", "Do estrangeiro", ou "Da sua cabeça", sai-me, esdrúxula: "Da lavandaria...". Mas ele queria mais. Ou porque ainda não tinha deveras acordado, ou porque tem uma cadeia imensa de lavandarias: quis saber de qual lavandaria. Especifiquei, cheia de paciência. (Jó era um menino, ao pé de mim, quando estou em brasa.) Atordoado, fez-me repetir qual o problema que me levava a ligar-lhe (vá que não acrescentou a esta hora). Depois de se inteirar, disse-me que, àquela distância, não podia resolver o meu problema. (Nunca ninguém pode resolver nenhum dos meus problemas, esteja a que distância estiver. Eu sou um velho lobo, travestido de pessoa comum.) Então, fiquei nervosa um bocadinho mais a sério, e perguntei assim: "O senhor explique-me só uma coisa, que eu fiquei sem perceber: para que é que serve este botão de ajuda que, efectivamente, não toca para lado nenhum, e este telemóvel, que vai dar a alguém que não pode fazer nada?". Então não é que ele me responde que "Um e outro servem para resolver outro tipo de problemas, diferentes daquele que a senhora me relatou"?  (Faço uma ideia. Hão-de ser problemas mais intrincados, problemas de pele, problemas de matemática, problemas do genital.) É sempre. Obrigadinha, cosmos. Há muito que percebi que sou psiquiatra de mim mesma. 

Na senda de "Sou só eu?" # 5

Que, quando não sei do telemóvel, peço a alguém próximo que me ligue, a ver se ele não estará a brincar às escondidas comigo (em que eu sou o do coito) ou à cabra cega (em que eu sou a cabra), a pessoa até me faz a vontade, eu lá encontro o animal, agarro-me a ele como se tivéssemos uma relação, e a primeira coisa que constato, surpreendida, é: Ah, olha, e já tinha aqui uma chamada não atendida...?


01/03/2017

Estive a pensar na prenda ideal para os meus amigos

e, já que não quero participar com uma transferência para o tal NIB — mesmo pelo princípio e pelo fim da questão (nada a ver com a pretensa despesa, já que cada um dá o que quer e a mais não é obrigado) —, lembrei-me de um kit de viagem. Tudo metido numa caixa de sapatos Cubanas*, com um charuto cubano colado na tampa (só um, para que tenham oportunidade de brigar por ele), feito em cima do joelho (ou, como diriam os brasileiros, feito nas coxas), assim rudimentar, para dar aquele toque rústico:

- Mapa-mundi, para riscarem os países todos que visitarem. Se forem espertos, riscam-no todo, mesmo que não passem do Vaticano;
- Diário de viagem, para escreverem cenas. Já leva prefácio da minha autoria, a avisar que não vale descrições gastronómicas, simpatia dos empregados, mares azuis-turquesa, bolhas nos pés, nem nada de clichés de viagem que se podem colar nos FB, Insta e entupir os Whatsapps dos amigos e de todos os contactos em geral;
- Óculos de ver ao perto, para ele ver os tapetes do quarto; óculos de ver ao longe, para ela ver o tecto do quarto; 
- Umas quantas caixas de pastilhas azuis (com manual de instruções, para que não as confundam com pastilhas de mentol para a tosse), para que não possam dizer que foram a Roma e não viram o Papa;
- Brinquedos, para quando estiverem chateados, sem nada para fazer;
- Creme autobronzeador, para parecer (porque à mulher de César não basta ser séria);
- Um biquíni muito pequenino às bolinhas amarelas, para ser usado por qual lhe calhar;
- Máquina fotográfica à prova de água e de aventura, nem que seja para usarem na banheira;
- Comprimidos para o enjoo. Ele há demasiados agentes desencadeadores;
- Toblerone/Milka/Maltesers/M&M* — têm que voltar (ainda) mais gordos;
- Umas folhas de um chá qualquer que os ponha a rir;


- Bilhete só de ida para um paraíso fiscal, a ver se ele se deixa de merdas.

* NMPPI